sexta-feira, 30 de setembro de 2011

RELATIVIZAÇÃO: UM MUNDO MÚLTIPLO – RENATO LESSA



                                             ANÁLISE E COMENTÁRIOS:


A percepção existente de que o mundo está a ficar cada vez mais homogêneo está presente nos dias atuais. A idéia e experiência da globalização através dos mesmos anúncios e símbolos que parecem se apresentar em todos os lugares veio a se reforçar desde o final do último século.
Neste período, principalmente na década de noventa, surgiu a idéia de final da civilização por conta da mudança para um novo milênio. Este processo cíclico, que já aconteceu outras vezes, era marcado pela idéia do final da história da humanidade. Isto significava que a humanidade finalmente teria concebido um modo de vida materializado nas instituições políticas das democracias ocidentais – com base na liberdade de imprensa, direitos individuais, divisão de poderes, controle sobre decisões políticas, liberdade de pensamento, etc. – como um verdadeiro pacote civilizatório, construído desde os séculos XVII e XVIII, que progressivamente ganhou consistência como passar do tempo. Já no século XX, este pacote teria se manifestado de modo que esse mundo liberal fosse o acabamento de todas as experiências anteriores da humanidade, como se todo esse processo histórico teria servido como experimento para a construção deste suposto modelo ideal vigente. Este pensamento trás a idéia de que nada além disso poderia acontecer, como se estivéssemos condenados a nenhuma nova experiência ou forma de organização da sociedade. Esta idéia foi trazida pelo Francis Fukuyama – a expectativa terminal de esgotamento da capacidade criativa dos seres humanos. Estas hipóteses fazem com que haja uma convergência na qual estamos condenados a reduzir o grau de diversidade que sempre nos caracterizou.
Esta idéia de terminalidade, que traz uma noção de que nenhum aperfeiçoamento é possível e que nenhum acréscimo pode ser feito, pode bem ser exemplificada se analisarmos a Idade Média, por sua duração e isolamento – fato que mostra bem esta realidade. Toda esta visão de mundo traz aos que atualmente “comem esta idéia”, a noção de perfeição que, voltando à idade média, só foi desmontada quando “o indivíduo” conseguiu enxergar que o seu potencial e existência poderiam mudar o mundo. O surgimento do indivíduo, que aparece a partir do século XV, se deu através do argumento de que este mundo é um mundo no qual a dignidade humana tem um papel muito forte. O que começou a se dissolver com estas novas idéias foi uma cobertura teológica política que limitava as possibilidades de invenção e redescrição da experiência histórica da humanidade em detrimento de uma nova visão na qual os indivíduos passaram a serem protagonistas da história.
A partir desse momento (o inicio da modernidade), o pensamento filosófico e social começou a dispor de uma hipótese nova a respeito da história humana que deixou de ser marcada pela fatalidade de uma orientação divina para ser um espaço da experimentação. Surge então o princípio da relatividade através dos estudos de Michael de Montaigne com a idéia de que a experiência humana no planeta é marcada por uma enorme diversidade. As diferenças entre civilizações começaram a ter uma nova visão: a visão de horizontalidade. Através do texto “Dos canibais”, ao fazer uma análise sobre uma tribo indígena do Brasil, Montaigne horizontalizou as avaliações sociais perante outras sociedades, fazendo uma análise crítica dos seus costumes comparando-os aos da sociedade européia. “Ou seja, não só o outro é diferente de mim (sem inferiorizar), me colocando na posição do outro, como chave analítica vantajosa para entender o que eu sou”. Este contraste de diferença é essencial para que se faça uma avaliação crítica. Os estudos das ciências sociais derivam destes estudos de Montaigne – se por no lugar do outro para se analisar. Depois de feito este estudo, Montaigne começou a ver a diferença dos poderes políticos entre as civilizações onde os índios ao menos tinham em seus “reis” as figuras mais fortes e os europeus uns verdadeiros “parasitas” no poder. Este contraste traz à tona a legitimidade política dos reis europeus que era determinada pelo uso da força, das crenças, das mentiras, etc.
Toda esta viagem ao passado e principalmente aos estudos de Montaigne feito pelo Renato Lessa nos mostra que a capacidade de invenção dos seres humanos, de modo algum pode ser cancelada por qualquer experimento social. Isto se mostra como antídoto a esta desistência. A humanidade já passou por tantos momentos históricos e regimes políticos agressivos e/ou autoritários que foram superados por esta forma de resignificar e transformar o meio social. O que pode ser mostrado como evidência de que esse projeto de monoculturalidade não terá êxito? A história é parte da explicação do porque nós somos diversos e é possível imaginar que esta capacidade de diversificação histórica tem haver com a nossa própria espécie. O ser humano, em relação à natureza, mostrou-se capaz de adicionar elementos e não repetir as histórias dos demais animais. Esta idéia remete ao pensamento de Pico della Mirandola de que dEUS determinou leis para as outras espécies e para Nós deixou o livro aberto. Esta estratégia dos seres humanos é da variedade e a prova é a presença da humanidade no planeta inteiro através de formas culturais diferentes. Estas diferenças nos acompanham há muito tempo que, mesmo no modo da hipótese de vivermos em um mundo que nos imponha as mesmas coisas, as mesmas regras de mercado, os mesmos padrões políticos, ainda assim nós nos mostraremos sempre diversos.
Há um aspecto que tem que ser adicionado que faz com que o tema da diversidade e da relatividade seja tão forte – que tem haver com uma característica específica do homem: o que caracteriza o ser humano? “Este é um animal que fala” (Aristóteles). E é a capacidade da linguagem que nos dá a possibilidade de descrever e anunciar o medo pelo qual se dá a sua inserção no mundo. Os fatos não falam. A junção disto fez com que fosse criada a ciência que, nada mais é do que a repetição sistemática de perguntas que os cientistas fazem aos seus experimentos. E através da linguagem nós construímos versões do que o mundo é – o mundo é fabricado linguisticamente.
A questão central desta problemática é: a diversidade, diferenças, a relatividade das coisas, o fato de que padrões culturais não se repetem, padrões mentais não se repetem, valores também não são repetíveis; há uma continua produção de novas formas de perceber a vida social. Tudo isto tem como fundamento o fato de que somos seres que utilizam a linguagem. Estas questões nos trazem a um ponto de reflexão do fato de que somos fabricantes de mundos e também portadores de versões diversas do mundo. Algumas versões contêm a todos; outras já são mais restritas; outras são exclusivas e individuais, que não dividimos com ninguém. “Nenhuma versão do mundo tem a legitimidade para determinar que outra versão seja errada, do ponto de vista da verdade”. O homem também é um ser que ignora outras versões de mundo. “Todos somos prisioneiros das nossas circunstâncias particulares. Não há o sujeito que possua a circunstância das outras circunstâncias. Este sujeito é o nomoteta. O que inventa os nomes é o que tem pretensões de domínio absoluto”. O não saber nos faz ignorantes – no sentido de ignorar outras versões. O único modo de alargar o ciclo da ignorância é a cooperação. Esta cooperação se dá através da política, da interação entre os seres, sair de si, da sua experiência pessoal produzindo o espaço publico, discutindo questões de interesse mais abrangentes. Aprendemos com os outros e para isso temos que ter um ambiente de liberdade com um arranjo institucional que permita/garanta que a maioria governe, sobretudo que as minorias tenham seus direitos, que sejam ouvidos e protegidos. Estas minorias devem ser escutadas pois podem conter sementes de idéias fundamentais e necessárias a sociedade como um todo. Uma sociedade decente é aquela que dá garantias de proteção constitucional, legal, às expressões das minorias. O limite para isso é a tolerância e nós não somos obrigados a tolerar os intolerantes. A minoria cuja identidade implica/exija a destruição da versão de mundo que acolhe como parte de si, esta infelizmente não pode fazer parte do jogo. A condição é aceitar o jogo como um todo, pois fazemos parte de um jogo onde outras visões de mundo estão presentes.
O mundo ta ai e continua diverso. O que complica é a condição de escuta dessa diversidade. Ao invés de observar o mundo a partir destes marcadores de homogeneidade, que a velocidade da observação nos induz a pegar, temos que praticar uma absorção lenta, tentando captar os sinais do que resiste – o que resiste é o diverso, o diferente, a variedade. O segredo todo é tentar associar esta visão de variedade com uma visão de que ao mesmo tempo não crie uma humanidade compartimentada, que não pode conversar, que não pode se entender. Devem ser valorizados também os fatores de convergência. Não estamos condenados a homogeneização absoluta nem à fragmentação total que impeçam a existência das conversas e da convergência.
Relativizar é quando deixamos de lado a visão preconceituosa e aprendemos a ver o outro como diferente, não mais como inferior ou primitivo. Percebemos que se trata de culturas diferentes que se convergem, cada uma com suas características específicas.



A POLÍTICA COMO VANTAGEM – MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Vídeo disponível no link http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/11/30/integra-a-politica-como-vantagem-marco-aurelio-nogueira/




                     A POLÍTICA COMO VANTAGEM – MARCO AURÉLIO NOGUEIRA
                                              
                                                     COMENTÁRIOS E ANÁLISE

A diferença entre tirar vantagem e obter vantagem está na origem desta e o resultado que ela ocasiona. Mesmo que obter vantagem parece ser uma expressão menos “pesada”, a pessoa se coloca em posição de superioridade perante a outra, obtendo assim algum tipo de benefício. Estando assim pode se valer da vantagem para prejudicar os outros ou se mostrar diferente dos outros. Falando em vantagem, entramos em um território em que podermos ter um lado lícito ou um lado ilícito. De alguma maneira a corrupção é uma ação de tirar vantagem que se vale para obter benefícios. A palavra vantagem é escorregadia por poder assumir significados que negam ou contradizem uma proposição que visa pensar em política como vantagem no sentido positivo. Tudo isto significa que podemos pensar na política de duas maneiras:
1.      A primeira, que parece ser o ponto de vista dominante, aquele no qual a gente se remete quando normalmente falamos sobre política – é o qual associamos a política ao poder como um conjunto de ações e de atos dedicados a organizar o acesso ao poder ou organizar o próprio poder. É um pensamento usado para usufruir da política para conquista do poder ou seu manuseio, sendo assim a política “uma grande vantagem”. Resume-se assim, o objetivo dos políticos nas campanhas eleitorais, a conquista de votos.
2.      O outro sentido que, de certa maneira, é mais dissimulado, mais oculto, que pulsa de maneira nem sempre perceptível das pessoas, associa política À construção da convivência. Este modo é o que os cientistas políticos chamam de modo clássico de se pensar a política. Clássico por ter sido apresentado há muitos séculos na Grécia pelos filósofos das escolas platônicas ou aristotélicas. A política, mesmo quando passa a ser usada ao benefício, ao poder, é um conjunto de atividades voltado para a organização da convivência entre as pessoas.
Política como poder x Política como construção da convivência coletiva.
Paralelo a este embate, podemos fazer uma análise sobre os protagonistas da política que são as pessoas que estão envolvidas neste trabalho. Podemos, para fazer isto, dividir os protagonistas em quatro: o cidadão, os políticos, os governantes e os técnicos e funcionários. São quatro grupos que forma a política, mas cada um com um conjunto de expectativas e de metas diferentes. O que os cidadãos esperam da política? E os demais grupos? Os cidadãos desejam obter felicidade, ou seja, condições para viver as suas vidas (justiça, seguranças, etc). Os políticos não esperam isso podendo até agir para produzir estas condições. Porém, sua grande expectativa é a obtenção de prestígio, fama ou votos, do mesmo modo que os governantes. Vêem, na política, uma forma de aclamação ou obtenção de prestígio. Os servidores, da mesma maneira esperam obter este reconhecimento com suas ações querendo que a sua proposta seja reconhecida tanto pelos usuários do serviço público quanto pelos seus colegas de trabalho. Então, as expectativas de todos os protagonistas, produzem diferentes visões do que a política pode oferecer de vantajoso para estas pessoas.
Sem levar em conta todas estas questões, nós não podemos resolver se a política de fato é uma vantagem para comunidade ou um problema. Talvez a resposta esteja no meio, sendo a política, tanto um problema quanto uma solução ou vantagem para a comunidade humana. Se pensarmos na política pelo modelo clássico, todos são políticos. Ou, sendo mais rigoroso, todos deveriam ser políticos. Todos deveriam se dedicar a essa arte atuando para melhorar os recursos para agir politicamente, neste sentido. Como um protagonista deste macro e permanente esforço de construção da convivência entre pessoas que pensam diferentes. Olhando deste ponto de vista no qual todos são políticos, não é verdade, porém que todos são políticos o tempo todo porque os humanos são, inevitavelmente, levados a praticar atos que não são políticos. A exemplo: a praticar atos criminosos ou ações desviantes que levam à destruição de laços – ações predatórias, etc. Estas ações predatórias não devem ser consideradas políticas e muitas vezes as pessoas agem assim sem intenção, sem saber, quase por um espasmo ou cólica. S]ao ações que podem abarcar uma zona, que é a zona da insensatez. Muitas vezes estas ações são praticadas para a obtenção de vantagem pessoal em relação aos demais.
Nas comunidades em crise ou que passam momentos de turbulência por questões sociais, cada vez mais as ações políticas são substituídos por atos predatórios – aumento da criminalidade, caos, desordem, etc. São ações que são originadas pelo ambiente, que faz com que o ser veja o outro como inimigo, sendo forçado a conviver com o outro sem que se gostem, se respeitem etc. – eminentemente um sacrifício. Porém este discurso é muito bonito de se ver, mas muito difícil de se viver.
Saindo desta visão da política como construção da convivência e indo para a visão da política como poder, as coisas se complicam. A natureza do poder é a do acúmulo constante de poder, ou seja, é ilimitado. Se o poder é uma constante, devemos encontrar na comunidade, formas de fazer com que ela atue, haja e se organize, para combater o poder, ou no mínimo, um modo a controlá-lo, a limitá-lo ou humanizá-lo. Isto significa introduzir mecanismos na vida das pessoas que cheguem a contagiar aqueles que ocupam os cargos de poder. “Se há algo que defina o poder é a busca constante de mais poder” Tomas Hobbes.
O grande problema das sociedades se concentra na busca pelo poder, no controle do poder por poucos, etc., sobretudo, levando em consideração que há uma espécie de mola no poder, que é a mola da acumulação permanente. Como fazer para desarmar esta mola? Evitar que ela se manifeste o tempo todo incomodando e fazendo dos poderosos uma casta distinta dos outros e contra os outros. Quais são aqueles elementos que são inerentes a política e que podem ser maximizados e/ou reforçados, para impulsionar a política na direção correta? O diálogo, a argumentação e o convencimento (que o Marco Aurélio Nogueira define como os três pilares do seu triângulo de soluções). Reforçando estes três elementos temos condições de postular a política como vantagem e dizer que, se nós conseguirmos estabilizar a nossa coexistência - sobretudo nas relações que envolvem poder, diferença e luta pela afirmação de interesses – estes elementos formam uma comunidade que não opera em um jogo em que alguém tem que perder. Podemos trabalhar esta questão ao analisar o processo eleitoral como uma construção de idéias que objetivam a melhoria da sociedade como um todo e não da forma atual em que um ganhe e o outro perca, sendo visto como um derrotado ou humilhado. Assim todos ganham pois o diálogo do processo foi construtivo até para os que não se elegeram. Se um debate entre o que vai ganhar e o que vai perder for marcado pela urbanidade, pela busca do esclarecimento recíproco, reforçará assim esta idéia.
Sendo assim, a existência de um diálogo pode fazer com que a diferença seja preservada, eventualmente, valorizada, sem que se desdobre em aumento da desigualdade. A defesa da individualidade e a defesa da diferenciação – o grande desafio é continuar com esta diferenciação, reduzindo a desigualdade. 

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

REPRESENTAÇÃO POLÍTICA: FUNDAMENTOS E CRISE - RENATO LESSA

Link do vídeo da palestra:  http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/11/23/representacao-politica-fundamentos-e-crise-renato-lessa-2/



COMENTÁRIOS E ANÁLISE SOBRE A PALESTRA:
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA: FUNDAMENTOS E CRISE POR RENATO LESSA

As sociedades democráticas mundiais não vão bem, apesar do aumento das sociedades democráticas no mundo contemporâneo, de ocorrerem as eleições, etc. A idéia é refletir as formas atuais das diversas instituições democráticas fazendo a análise a partir do estudo de três questões importantes presentes no mundo contemporâneo, para as quais ainda não temos respostas claras, nem modelos e teorias:
1.      O papel da justiça na sociedade democrática com a judicialização da política;
2.      A vida nas cidades como espaço político – hoje todos nós praticamente somos urbanos, resumindo, em sua grande maioria, os problemas sociais aos grandes centros;
3.      Violência na sociedade como fruto do sistema sócio-político.
Nós definimos a democracia como um sistema político no qual ao menos o direito ao voto o represente bem. Devemos fazer uma distinção teórica entre a democracia e a representação política para analisarmos com maiores detalhes o paradigma atual. Voltando no tempo vemos que nem sempre a democracia e a representação andaram juntas pois, no passado, o conceito de democracia exigia ausência de desigualdade, presença de grande espírito cívico, estado com território pequeno, sendo estas formas de organizações inexistentes nas sociedades atuais. No sistema democrático, questões de ordem pública têm prioridades em relação a questões privadas. A democracia surgiu como um experimento que só ocorreu no passado em dois lugares: Atenas e Roma (em certo momento histórico). A característica deste sistema era o princípio de isonomia, que determinava que todos os cidadãos da assembléia tinham pesos e valores iguais nas decisões - o princípio de isonomia significa que, independentemente da posição social das pessoas, em reunião na assembléia, todos possuem o mesmo poder de decisão.
No sistema democrático de Atenas todos participavam diretamente das decisões políticas, não existindo uma representação figurada. Existiam tribunais que cuidavam de alguns assuntos específicos, para que não fosse necessária uma assembléia geral para a resolução de pequenas questões. Na escolha dos integrantes dos tribunais, por exemplo, os democratas radicais não queriam usar o sistema do voto, por enxergarem neste sistema, uma forma aristocrática de escolha onde os melhores seriam sempre os escolhidos. Aristocracia significa governo dos melhores e no ponto de vista dos democratas, uma sociedade com sistema político eleitoral deve ser considerada aristocrata e não democrata. Existia assim uma idéia de aleatoriedade (na escolha por sorteio) entre os que pudessem serem escolhidos para cumprirem as tarefas importantes para a sociedade e para as definições de leis.
No final do século XVIII, ocorreram dois fatos importantes para a mudança do sistema político mundial: a Revolução Americana em 1776 e a Revolução Francesa em 1779. Nestes contextos históricos surgiram as primeiras idéias de representação política. Antes destes eventos as formas de governo não eram representativas por ter parlamentos formados por membros da aristocracia agrária em que os mesmos não tinham funções de representação. Na Revolução Americana, não havia um sentimento de patriotismo no país e as pessoas, independente dos treze estados em se dividiam, se viam como ingleses que viviam na América. O grande fator determinante para a quebra do sistema colonial foram as arrecadações de tributos e em sua distribuição na sociedade. Feita a revolução os estadunidenses pensaram a respeito de qual sistema político adotariam. Na época o sistema mais “livre” era o sistema inglês, mas, por estarem se libertando justamente deste sistema, não seria viável utilizar o mesmo formato, surgindo assim uma idéia de criação de um novo sistema político. Partiram de uma análise dos princípios que não queriam para determinar o que queriam: democracia – por acharem ser um governo em que o povo determinaria o andamento do estado, por ser anárquico, etc; absolutismo – porque deste princípio eles estavam acabando de se livrar.
Pensaram então em um sistema intermediário onde a maioria ou todos escolheriam a minoria que iria governar. Vale ressaltar que não existia nenhum sistema político com estas características até então, um sistema distinto da democracia por considerarem esta, um sistema onde a população com o poder de legislar colocaria uma lei que lhe coubesse em particular. Assim, as leis e todo o sistema seria um somatório de egoísmos. Porém quem garante o não egoísmo entre os representantes? A partir do princípio de que os representantes levariam os interesses dos que os elegeram. Vemos assim um paradoxo por que este sistema ter como principal foco um isolamento em relação à sociedade, em que teriam tranqüilidade para as determinações e escolhas.
Como grande exemplo deste sistema de representação temos a República, por apresentar bem estas características. Diferente do que parece, o sistema representativo não é uma continuação da democracia. Não foi por questões demográficas que passaram a adotar este novo formato. As escolhas foram determinadas pelo momento político em que viviam onde se baseariam em eleições competitivas.
Para fazermos um estudo mais aprofundado do sistema político temos que levar em conta os fatores filosóficos e teóricos por ser  a política uma expressão sócio-cultural de toda uma população, não tendo como base apenas fundamentações concretas. É através das invenções que uma sociedade se configura, assim como foi a invenção da representação. Sendo assim, como a representação passou a ser confundida com democracia? “A representação é um filtro que impede que as massas deseducadas tragam para si, na política, os seus apetites selvagens” Renato Lessa. Para respondermos esta pergunta devemos analisar todo o contexto histórico da política a partir destas duas revoluções. A grande diferença entre os pensamentos da representação política nos EUA e na França, é que a primeira era com base na aristocracia - onde eram escolhidos os melhores – e a segunda, pela sociedade ser fragmentada e cada um ter suas particularidades (deixando assim os cidadãos “sem tempo para a política”) foi necessária a criação de uma classe política – seres que seriam responsáveis por cuidar do sistema política e suas determinações. Uma classe política profissional e “full time” – tendo o tempo todo dedicado à administração pública.
Ambos os principais pensadores das duas revoluções, o Emmanuel Joseph Sieyés da França e o James Madison dos EUA, tinham a idéia de que o representante é distinto da sociedade. Assim, o representante constitui o eleitor como o representado e o ato de produzir representantes (a eleição) nos coloca na posição de representados. Então por que democracia? Por passar a ser dado a um número maior de pessoas, a partir do século XIX, o direito ao voto, antes restrito a algumas classes. Assim o princípio de representação passa a ser democratizado. “Democracia deixa de ser pensado como uma forma de governo na qual o poder de alguma maneira é exercido através de uma ação direta e passa a ser pensado como um governo no qual as pessoas tem o direto de escolher quem irão governá-las” Renato Lessa. Ao ver o Renato Lessa trazendo este contexto, lembrei-me de um conto do Eduardo Galeano que diz:
“Outro dia escutei um cozinheiro que reuniu as aves: as galinhas, os gansos, os pavões, os faisões e os patos. E eu escutei um pouco o que o cozinheiro dizia para elas. Achei interessante e gostaria de contar a vocês o que eu escutei. O cozinheiro perguntava com que molho elas queriam ser comidas. Uma das aves, acho que era uma humilde galinha, disse: “Nós não queremos ser comidas de maneira alguma.” E o cozinheiro esclareceu: “Isto está fora de questão.” Eu achei interessante esta reunião porque é uma metáfora do mundo. O mundo está organizado de tal forma que temos o direito de escolher o molho com que seremos comidos. Dizem que é um mundo democrático, mas me pergunto até que ponto é democrático um mundo onde a soberania se converteu, a soberania dos países e políticos se converteu em um objeto de museu.”
Voltando a linha de pensamento, a concepção originária tinha como base um autogoverno, mas esta concepção ficou no passado. A concepção contemporânea é com base no sistema no qual as pessoas escolhes quem vão governá-las. Então é uma função baseado no hetero-governo e não no autogoverno. A participação política meio maluca que é a política secreta através do voto. Outros podem enxergar isto como um direito de restrição. Porém a que ponto a política deve ser discutida? Outro ponto é a introspecção política nos dias anteriores à eleição onde há a ausência da discussão para esclarecimento de todas as dúvidas. Não seria mais interessante discutir as idéias para um melhor esclarecimento? Caímos assim no erro da individualidade do pensamento político que desconsidera os princípios da valorização da diversidade de idéias obtidas através de um debate. É uma dupla face na qual o modelo de política está completamente subsumida na vida privada. Então este é o contexto em que o vocabulário da representação, antropofagicamente, engole o vocabulário da democracia onde cada vez em que pedimos mais democracia, na verdade estamos pedindo mais representação política. Partindo destes princípios chegamos ao modelo de Representação Burkiana que tem a idéia de que o mandato para ser exercido requer que o representante tenha liberdade. É a idéia de que o parlamentar não deve ficar preso, vulnerável a pressão das políticas da base. Ele tem que ter liberdade para o âmbito de atuação, geral para a sociedade. Sendo assim, há uma característica do fenômeno geral das democracias contemporâneas: o afastamento entre o sistema político e a vida social. Este afastamento pode ser medido pela apatia política, pelo desinteresse político, etc. A política perdeu a centralidade e, mais específico no Brasil, gerou o experimento autárquico onde o parlamento é uma autarquia que não necessita se comunicar com o mundo anterior, a não ser quando é do seu interesse. O sistema passa a ser então auto-suficiente, funcionando independentemente do mundo exterior. “Então o país tem este desafio: como podemos consolidar uma ordem democrática sem que canais de comunicação sobre o que a sociedade pensa (será que ela está pensando?) e como estes pensamentos podem ser vocalizados e transformados em referência para o debate público?”
Os partidos e parlamentares não têm feito isto deixando o poder de decisões restrito ao poder executivo. Assim o próprio conceito de representação passa a gerar um maior cuidado ao usarmos. Será a palavra representação, uma palavra apta a denominar ou designar este tipo de experimento?

sábado, 17 de setembro de 2011

O que é a Natureza Humana?





Em novembro de 1971 Michel Foucault se encontrou com Noam Chomsky em um programa da TV holandesa e ali debateram por cerca de uma hora o tema "Natureza Humana: Justiça Versus Poder". A transcrição do debate estava a algum tempo atrás disponível, em inglês, no site da Universidade de Chicago: http://www.uchicago.edu/research/jnl-crit-inq/foucault/foucault.chomsky.html.
Reparei, entretanto, que já não está mais lá e, também, não mais localizei nada a respeito na instituição citada.

Encontrei, todavia, uma tradução espanhola em http://www.intramed.net/UserFiles/Chomsky-2parte.pdf (mas apenas da 2a. parte, incompleta) como também o vídeo do encontro em http://www.youtube.com/v/hbUYsQR3Mes .

Não sei de tradução brasileira, de forma que insiro a minha aqui, mas somente da parte que julguei mais interessante (como diria o próprio Foucault, eis aqui, então, um desses desprezíveis cortes).




FONS ELDERS (moderador): Bem, talvez fosse interessante nos aprofundarmos no problema de estratégia. Suponho que aquilo que você chama de "desobediência civil" é provavelmente o mesmo que nós chamamos de "ação extra-parlamentar"?

CHOMSKY: Não, eu acho que vai além disso. Ação extra-parlamentar incluiria, vamos dizer, uma demonstração legal de massas, mas desobediência civil é mais objetiva que toda ação extra-parlamentar, naquilo que isso significa desafio do que é alegado, incorretamente no meu ponto de vista, pelo estado ao fazer as leis.

ELDERS: Então, por exemplo, no caso da Holanda, nós tivemos algo como um censo populacional. As pessoas foram obrigadas a responder perguntas em formulários oficiais. Você poderia chamar isso de desobediência civil, se alguém se recusasse a preencher os formulários?

CHOMSKY: Correto. Eu deveria ser um pouco mais cuidadoso sobre isso, porque, voltando para um ponto muito importante formulado por Foucault, as pessoas não necessariamente autorizam o estado a definir o que é legal. Agora, o estado tem o poder de forçar uma certa concepção do que é legal, mas poder não implica em justiça ou ainda em correção; então o estado pode definir alguma coisa como desobediência civil e pode estar errado ao fazer isso.

Por exemplo, nos Estados Unidos o estado declara como desobediência civil, vamos dizer, descarrilar um trem de munição que está indo ao Vietnã; e o estado está errando em definir isso como desobediência civil, porque é legal e correto e deveria acabar. É correto tomar medidas que irão evitar atos criminosos do estado, da mesma forma como é correto violar uma lei de trânsito para prevenir um homicídio.

Se eu parei meu carro diante um semáforo que estava vermelho, e então passei por este sinal para evitar que alguém, vamos dizer, atropele um grupo de pessoas, é claro que isso não é um ato ilegal, isto é uma ação apropriada e correta; nenhum juiz são convenceria você de erro na medida.

Da mesma forma, uma boa porção daquilo que as autoridades estatais definem como desobediência civil não é realmente desobediência civil: de fato, são situações legais, comportamento obrigatório de violação dos comandos do estado, que podem ser ou não ser comandos legais.

As pessoas tem que ter bastante cuidado sobre os chamados atos ilegais, eu acho.



FOUCAULT: Sim, mas eu gostaria de lhe fazer uma pergunta. Quando, nos Estados Unidos, você comete um ato ilegal, você o justifica em termos de justiça ou de uma legalidade superior, ou você justifica isso pela necessidade de luta de classes, a qual, é no presente momento essencial para o proletariado em sua luta contra a classe governante?

CHOMSKY: Bem, aqui eu gostaria de colocar o ponto de vista que é dado pela Suprema Corte Americana e provavelmente outras cortes em tais circunstâncias; que é tentar situar o acontecimento nos limites mais específicos possíveis. Eu achava que ultimamente faria muito bom senso, em muitos casos, acionar as instituições legais de uma dada sociedade, se dessa forma você estivesse golpeando as origens do poder e opressão naquela sociedade.

Entretanto, há grande número de leis representando certos valores humanos, os quais são valores humanos decentes; e tais leis, corretamente interpretadas, permitem que você possa desobedecer os comandos estatais. E eu penso que é importante explorar esse fato ...

FOUCAULT: Sim.
CHOMSKY: ... é importante explorar as áreas do direito as quais são formuladas corretamente e então talvez acionar aquelas áreas legais as quais simplesmente ratificam algum sistema de poder.
FOUCALT: Mas, mas, eu, eu...
CHOMSKY: Deixe-me dizer ...
FOUCAULT: Minha pergunta, minha pergunta foi esta: quando você comete um ato claramente ilegal ...
CHOMSKY: .... o qual eu considero como ilegal, não apenas o estado.
FOUCAULT: Não, não, bem, do estado ...
CHOMSKY: ... que o estado entende como ilegal ...
FOUCAULT: ... que o estado considere como ilegal.
CHOMSKY: Sim.

FOUCAULT: Você está cometendo o ato em virtude de uma justiça ideal, ou porque a luta de classes torna isso útil e necessário? Você se refere a uma justiça ideal, este é o meu problema.

CHOMSKY: Novamente, em muitas ocasiões quando eu faço algo que o estado chama de ilegal, considero que isso seja legal: isto é, eu considero o estado criminoso. Mas em algumas instâncias isso não é verdadeiro. Deixe-me ser bastante concreto e ir da área da guerra de classes para a guerra imperialista, onde a situação é algo mais clara. Pegue o direito internacional, um instrumento muito fraco, como sabemos, não obstante incorpore interessantes princípios. Bem, a lei internacional é, em muitos aspectos, um instrumento dos poderosos: isto é, uma criação de estados e seus representantes. No desenvolvimento do atual corpo de leis internacionais não houve participação dos movimentos de massa camponeses. A estrutura das leis internacionais reflete este fato, quer dizer, de o direito internacional permitir um alcance muito grande de intervenção na preservação das atuais estruturas de poder que definem elas mesmas como estados contra os interesses das massas que esperam ser organizadas em oposição aos estados. Agora, esse é o fundamental defeito do direito internacional, e eu acho, que estaria a justificar a oposição a aspectos do direito internacional como não tendo validade, tanto quanto os direitos divinos dos reis. São simplesmente um instrumento de poderosos para reter seu poder.

Mas, de fato, o direito internacional não se reduz a essa modalidade. E evidentemente existem interessantes elementos de direito internacional, por exemplo, incluídos nos princípios de Nuremberg e da Organização das Nações Unidas, os quais permitem, de fato, eu acredito, autorizar o cidadão a acionar seu próprio estado, em formato que este mesmo chamaria de criminoso. Não obstante, o cidadão está agindo legalmente, porque as leis internacionais também tratam de proibir a ameaça ou uso de força nos negócios internacionais, exceto em algumas circunstâncias muito específicas, das quais, por exemplo, a guerra no Vietnã não é uma. Isto significa que no caso particular da guerra do Vietnã, que em boa parte me interessa, o estado americano está agindo de forma criminosa. E as pessoas têm direito de parar criminosos que estão cometendo assassinatos. Apenas porque o criminoso pretende chamar sua ação de ilegal quando você tentar para-lo, isto não significa que sua ação assim seja. Um caso perfeitamente claro está no dos Documentos do Pentágono, o quais, eu suponho, você está a par.

Reduzido para o essencial e esquecidos os legalismos, o que está acontecendo é que o estado está processando pessoas por expor seus crimes. É o que está acontecendo. Agora, obviamente que é um absurdo, e alguém precisa prestar atenção para o que distorce um processo judicial razoável. Além do mais, acho que o atual sistema de leis ainda serve para explicar porque isso é absurdo. Mas se não servir, nós teríamos que nos opor a esse sistema de leis.

FOUCAULT: Então esse é o nome de uma justiça pura da qual você critica o funcionamento? Há uma importante questão para nós aqui. É verdade que em todas as lutas sociais existe o problema da "justiça". Para colocar isso mais precisamente, a luta contra a justiça de classes, contra sua injustiça, é sempre parte de uma luta social: demitir os juízes, mudar os tribunais, anistiar os condenados, abrir as prisões, tem sido sempre parte das transformações sociais tanto quanto elas podem se tornar ligeiramente violentas. No presente momento, na França, as funções da justiça e da polícia estão direcionadas para atacar aqueles que nós chamamos de "gauchistas". Mas, se a justiça é estática nessa luta, então serve como um instrumento de poder, e isto nos tira as esperanças que um dia isso acabe, nessa ou em outra sociedade, e que pessoas venham ser premiadas de acordo com seus méritos, ou punidas de acordo com suas faltas. Em lugar de pensar na luta social em termos de justiça, as pessoas têm é que enfatizar a justiça em termos de luta social (g.tr.).


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Noam Chomsky, professor de linguística e filosofia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Seus livros incluem Poder e Perspectivas: Reflexões sobre a natureza humana e a ordem social (1996), Ilusões necessárias: através do controle das sociedades democráticas (1991), e Teoria da estrutura lógica da linguagem (1955-56).
Michel Foucault (1926-1984) foi professor do Collège de France, filósofo, historiador, inúmeras obras traduzidas para o português, entre as quais: A história da loucura, As palavras e as Coisas, Vigiar e Punir, A História da Clínica.



RESENHA
DA NATUREZA HUMANA: JUSTIÇA CONTRA PODER



Resenha sobre o texto “Da natureza humana: Justiça contra poder” do livro “Ditos e Escritos” de Michel Foucault. Discussão com N. Chomsky, M. Foucault e F. Elders em debate na televisão holandesa gravado na École Supérieure de Technologie de Eindhoven, novembro de 1971.

           


SALVADOR
2011 
DA NATUREZA HUMANA: JUSTIÇA CONTRA PODER

O debate gravado em novembro de 1971 na École Supérieure de Technology de Eindehoven, na Holanda, conduzida de forma excepcional por Fons Elders que direcionou a linha de raciocínio dos entrevistados, constou com a presença do francês Michael Foucault – historiador, filósofo e professor do Collège de France – e do estadunidense Noam Chomsky – lingüista, filósofo e professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
Este encontro teve como objeto a discussão sobre a verdade por trás da definição de natureza humana, dividida em duas partes: a primeira mais densa e concentrada em questões de natureza filosófica e a segunda concentrada em questões de natureza política – ainda que as duas coisas estejam sempre integradas. Seu desenvolvimento teve como base o seguinte questionamento: “somos produto de todos os tipos de fatores exteriores, ou possuímos uma natureza comum graças à qual nós nos reconhecemos seres humanos?”.
A partir deste questionamento inicial, F. Elders inicia propondo que os entrevistados associem a idéia central do debate, “natureza humana”, à suas especialidades, experiências e obras, relacionando-as com suas áreas de formação. Desta forma, ambos transcorrem seus comentários iniciais questionando, complementando, concordando ou discordando uns aos/dos outros – “Está ligado ao estado do conhecimento, do saber no seio do qual nós trabalhamos. A lingüística, que lhe é familiar e que o senhor conseguiu transformar, excluía a importância do sujeito criativo, do sujeito falante criativo, enquanto a história das ciências tal como ela existia quando as pessoas da minha geração começaram a trabalhar, ao contrário, exaltava a criatividade individual [...] (Foucault, 1971, p.109).
Chomsky começou associando a natureza humana a uma essência criativa, tendo como base o acesso a certo número de dados que são articulados e organizados pelos indivíduos inconscientemente, através de um código de abordagem. As propriedades desse sistema de conhecimento são denominadas “linguagem inata” ou “conhecimento instintivo”. “[...] a hipótese segundo a qual o indivíduo contribui em grande parte para a elaboração da estrutura geral e, talvez, para o conteúdo específico do conhecimento que ele definitivamente deriva de sua experiência dispersada e limitada.” (Chomsky, 1971, p.89). M. Foucault, ao longo de suas metáforas durante o debate, “concorda, discorda, ironiza” e se diz suspeito com esta noção de natureza humana, pois para ele as ciências têm conceitos e noções de diferentes graus de elaboração. Ele analisa a biologia em relação ao conceito de natureza humana e traz que, esta ciência, é elaborada, e estudada em diferentes formas (graus) – com funções de classificação, de diferenciação ou de análise – questionando se é possível o conceito de vida ser responsável pela organização do saber biológico. “Na história do conhecimento, a noção de natureza humana me parece ter desempenhado essencialmente o papel de um indicador epistemológico para designar certos tipos de discursos em relação ou em oposição à teologia, à biologia ou à história. Eu teria dificuldades em reconhecer nela um conceito científico” (Foucault, 1971, p.91).
Complementando esta linha de raciocínio, Chomsky fala sobre a evolução científica dos séculos XVII e XVIII considerando os limites (fatores epistemológicos) dos pensadores deste período, a partir de uma análise com base na sua compreensão atual. Ele compara a definição de espírito dada por Descartes, na qual considera científica e não metafísica, com a escolha intelectual de Newton, que determinou a ação da distância pela penetração do domínio oculto científico. Esta forma de análise de Chomsky foi muito combatida por Foucault durante todo o debate por ter como base em seu estudo a soberania do sujeito sobre o conhecimento. Para Foucault, a idéia de Descartes deve ser analisada como parte integrante evolutiva da história do conhecimento, desconsiderando nesta idéia a originalidade cartesiana. Ele atribui a visão de Chomsky sobre Descartes como sendo de origem da corrente agostiniana de pensamento cristão, onde pode ocorrer o desenvolvimento das potencialidades do espírito através do aprofundamento de si. “[...] analisar a capacidade produtiva do conhecimento como prática coletiva; e reinserir os indivíduos e seu conhecimento no desenvolvimento de um saber que, em dado momento, funciona segundo certas regras que se podem registrar e descrever.” (Foucault, 1971, p.98). Foucault diz que a verdade está escondida aos olhos dos homens pelos obstáculos do seu período que é reforçado por preconceitos ligados aos mitos, sendo a verdade revelada após a superação destes obstáculos.
Neste paradoxo sobre o conceito de natureza humana, Chomsky o define como sendo algo relativo a uma criatividade individual e independente da história do conhecimento. Em oposição, Foucault traz a idéia de que as criações são fruto do meio e das limitações do seu período de tempo – vistas por Chomsky como impulso ao desenvolvimento da criatividade. Chomsky complementa que estas limitações provam que as regras e a liberdade se implicam: “É precisamente essa limitação inicial de nossos espíritos a certo tipo de ciência que fornece a enorme riqueza e a criatividade do conhecimento científico [...]” “[...] Porque se tudo fosse possível, nada seria possível.” (Chomsky, 1971, p.105). Foucault faz uma analogia mais ampla onde a história do conhecimento influencia na proliferação das possibilidades por divergências, em um processo de transformação: “Diria, de preferência, que existem múltiplas maneiras de tornar simultaneamente possíveis um pequeno número de saberes [...]”. Diz só haver criatividade possível a partir de um sistema de regras independentes da natureza humana e enfatiza na valorização do estado da história do conhecimento como objeto, partindo do ponto de vista negligenciado. Ele traz associações em que o interesse no desenvolvimento de um determinado estudo, a exemplo do estudo da loucura ou estudo da causa de morte, é influenciado pelo meio e por suas necessidades sócio-econômicas. Em contrapartida, Chomsky reforça que a convergência e progressão da ciência se dão pela propriedade de nosso espírito, que se mostra dependente das limitações para desenvolver a criatividade. Para ele a compreensão da natureza do homem escapa ao alcance da ciência humana. Neste ponto vemos uma divergência entre os dois pensamentos onde um fala do conhecimento como objeto diversificado enquanto o outro vê o conhecimento como organização formal.
Na conclusão desta parte do debate, a parte filosófica, Chomsky coloca o behaviorismo em questão ao defini-lo responsável pela restrição da possibilidade de criação de novas teorias científicas de comportamento humano. Como um sistema de controle, o behaviorismo, na sua visão, se mostra interessante ao desenvolvimento destas limitações, por circunstâncias históricas. Ele o compara ao modo de análise exposta por Foucault, que defende a analise do produto como objeto para que não se tenha uma visão negligenciada. Chomsky é contrário a esta forma de análise por acreditar que a partir dela se desenvolveu os limites citados. Apesar da evolução dos argumentos e do debate, Chomsky reitera que esse processo de busca pela natureza humana é limitado por um conjunto de princípios desconhecidos que faz com que o assunto tenha uma abordagem abstrata e uma definição imprecisa.
Partindo para a segunda parte do debate, F. Elders leva as perguntas a um direcionamento mais político sem deixar o questionamento inicial, sobre a natureza humana, de fora. A princípio Foucault se recusa a responder sobre o porquê dele se interessar tanto por política em mais uma de suas ironias “Para lhe responder muito simplesmente, eu diria: por que eu não deveria estar interessado? Que cegueira, que surdez, que densidade de ideologia teria o poder de me impedir de me interessar pelo assunto, sem dúvida o mais crucial da nossa existência quer dizer [...]” (Foucault, 1971, p.111) “[...] Posso apenas responder-lhe perguntando por que eu não deveria estar interessado. (Foucault, 1971, p.112). Assim, após a resistência de Foucault, a questão foi direcionada a Chomsky que expressou a idéia de que a real natureza humana se manifestaria, caso fossem rompidas as barreias limitativas impostas pelo sistema arbitrário, opressivo e coercivo. Ele sugere que um modelo de sistema ideal teria um poder descentralizado, com livres associações incorporadas com outras instituições sociais e como sistema econômico. Este sistema, ele define como anarcossindicalismo, onde os seres humanos não seriam transformados em instrumentos, em engrenagem de mecanismo, não sendo tratados como elo da cadeia de produção. Após a idéia de Chomsky, Foucault diz não se ousar a propor um modelo de sociedade ideal. Na sua visão, as instituições consideradas neutras no processo anti-democrático, famílias, universidades e o sistema de educação em geral – que a princípio serviriam para disseminação do saber – atuam para manter o poder de uma determinada classe social. Estas instituições devem ser criticadas e atacadas fortemente para que sejam desmascaradas, possibilitando assim a luta contra elas. Ele defende que devemos indicar e mostrar todo poder político controlador, opressor e repressor.
Chomsky concorda com o raciocínio político exposto por Foucault e diz que as duas perspectivas devem ser consideradas válidas e urgentes – a tentativa de criar uma visão de uma sociedade futura justa e a de entender a verdadeira natureza do poder. Ele traz de volta a questão da natureza humana religando-a a uma estrutura social, em que suas propriedades possam realmente ser compreendidas criando assim uma vida humana mais significativa. Foucault vê este pensamento como perigoso, pois considerando esta natureza humana, sendo ela ideal e real, e que ela não teve espaço para se desenvolver em nossa sociedade atual, estaríamos definindo-a em termos apropriados à nossa sociedade. Ele o compara ao erro de Mao Tsé-Tung que distinguiu a natureza humana como burguesa e proletária. Chomsky traz a questão da necessidade e, conseqüentemente, o risco de se tomar medidas contrárias ao Estado. Ele define esta necessidade como desobediência civil, empreendida perante a incerteza sobre os seus efeitos, ameaça de um lado a ordem social podendo conduzir ao fascismo. Por outro lado corre-se o risco em não fazê-la. Ao praticá-la o ser, automaticamente, nega o estado e o considera criminoso. Em relação à definição sobre justiça, ele não a enxerga, diferente de Foucault, como um sistema de opressão. Para ele existem bases que residem nas qualidades humanas fundamentais que constroem a noção real de justiça. Estas qualidades fazem com que ele acredite na tomada de poder “justa” e não ditatorial da classe oprimida sobre a classe opressora em uma suposta revolução.
Foucault diz que esta consideração sobre o Estado é uma avaliação errônea sobre a justiça por partir do ponto de vista de uma justiça pura, em um processo de substituição sócio-político. Complementa que, na desobediência civil, o proletariado não faz guerra à classe divergente por justiça e sim pelo poder reiterando que, ao tomar o poder, o proletário pode exercer sobre a classe que ele acaba de triunfar, um poder violento e sanguinário como justiça própria. No interior de uma sociedade de classes o conceito de justiça funciona como reivindicação feita pelos oprimidos e como justificação dos opressores. A justiça é uma idéia inventada como instrumento de poder político e econômico ou como arma contra este próprio poder.
 A partir da leitura do texto “Da natureza Humana: Justiça contra o poder”, dos vídeos assistidos sobre o debate e documentários sobre ambos pensadores, concluímos que esta discussão sobre natureza humana é bem extensa, complexa e sedutora em ambas as linhas de pensamento. Foucault se mostra mais fechado e cético a questões metafísicas, baseando-se em informações precisas e empíricas, negando a suposta criatividade e materialidade do espírito como principal representante da natureza humana. Sua visão ultrapassa as barreiras ampliando a magnitude ideológica em sua relação à sociedade, partindo do princípio de valorização do conhecimento coletivo. Durante a entrevista Foucault se mostra como um “predador, pronto ao ataque de sua presa observando-a em busca do ponto ideal para atacar”. Chomsky nos traz bons argumentos políticos, mas falha ao tentar definir a essência da natureza humana sem mostrar uma posição precisa e empírica, às vezes remetendo a essências um tanto quanto religiosas (na sua origem). Achamos que seria muito mais interessante se pudéssemos ter um debate entre os dois, a partir da mesma linha de raciocínio, sobre o mesmo tema. Infelizmente Foucault faleceu em 1984 criando esta impossibilidade. Como foi dito por Chomsky no texto: “Muito bem, qualquer um pode considerar o que sabe hoje e se perguntar o que sabia há 20 anos, e ver que se esforçava confusamente para descobrir alguma coisa que compreende somente agora... se ele tiver chance.” (Chomsky, 1971, p.94) – temos certeza que hoje muitos assuntos, antes sem resolução, poderiam ser desenvolvidos através da evolução da história do conhecimento (durante estes anos) somada às experiências e conhecimentos adquiridos por ambos neste espaço de tempo. 


[Sessão] Regando o pensamento - Erva Mate!




      Passarei a escrever e trazer alguns textos subjetivos nesta nova sessão "Regando o pensamento - Erva Mate!". Nesta página estarão disponíveis diversos textos e argumentações sobre os estudos das subjetividades sociais, políticas, culturais e do pensamento humano.


"A importância do Lá ele


      O “lá ele” é uma das mais importantes expressões do idioma baianês, mais especificamente do dialeto soteropolitano baixo-vulgar. Segundo os léxicos, a expressão significa “outra pessoa, não eu” (LARIÚ, Nivaldo. Dicionário de baianês. 3ª ed. rev. e ampl. Salvador: EGBA, 2007, s/n).
      A origem da expressão é ambígua. Alguns etimologistas atribuem seu surgimento às nativas do bairro da Mata Escura, enquanto outros identificam registros mais antigos no falar dos moradores do Pau Miúdo. O certo, porém é que o “lá ele” desempenha papel fundamental em um dos aspectos mais importantes da cultura da primeira capital do Brasil – a subcultura urbana do duplo sentido.
      Desde a mais tenra infância, os naturais da Soterópolis são treinados para identificar frases passíveis de dupla interpretação. Da mesma forma, os soteropolitanos aprendem desde cedo a engendrar artimanhas para que seu interlocutor profira expressões de duplo sentido.
     Assim, as pessoas vivem sob constante tensão vocabular, cuidando para não fazer afirmações que possam ser deturpadas pelo interlocutor. Para indivíduos do sexo masculino, por exemplo, é vedado conjugar na primeira pessoa inocentes verbos como “dar”, “sentar”,”receber”, “cair”, “chupar” etc. O interlocutor sempre estará atento para,ao primeiro deslize, destruir a reputação de quem pronunciou a palavra proibida.
     Como antídoto para a incômoda prática, o “lá ele” surgiu como uma ferramenta indispensável na comunicação do soteropolitano. Assim, o indivíduo que falar algo sujeito a interpretações maliciosas estará a salvo se, imediatamente, antes da reação de seu interlocutor, falar em alto e bom som “lá ele!”
      Por exemplo, qualquer homem, por mais macho que seja, terá sua orientação posta em dúvida se falar “Neste Natal comi um ótimo peru”. Contudo, se sua frase for “Neste Natal comi um ótimo peru, lá ele!”, não haverá qualquer problema. No mesmo diapasão, confira-se:
    se um colega de trabalho enviar um e-mail perguntando “vai dar para almoçar hoje?”, não se pode redarguir apenas “Sim”; deve-se responder “Vai dar lá ele. Vamos almoçar”;
      se, na pendência do pagamento de polpudos honorários, um advogado perguntar ao outro “Já recebeu?”, a resposta deverá ser “Recebeu lá ele. Já foi pago”;
    ou, ainda, se alguém tiver a desdita a desdita de nascer no citado bairro do Pau Miúdo, o que poderá transformar sua vida em um interminável festival de chacotas, deverá sempre valer-se da ressalva: “eu sou do Pau Miúdo, lá ele”
       Para melhor compreensão da matéria, reproduz-se abaixo um exemplo real, ocorrido no último domingo durante a transmissão de futebol:
      - Locutor: “Subiu o cartão amarelo?”- Repórter: “Subiu o amarelo e o vermelho.”- Locutor: “Mas você está vendo subir tudo!”
      - Repórter: “Lá ele!”
      Note-se que o “lá ele” pode sofrer variações de gênero e número, de acordo com a palavra que se pretende neutralizar. Se, antes de uma sessão do TJBA, alguém perguntar “Você conhece os membros da turma julgadora?”, deve-se objetar com veemência: “Lá eles!”. Ou se o cidadão for à Sorveteria da Ribeira e lhe perguntarem “Quantas bolas o senhor deseja?”, é de todo recomendável que se responda “Duas, lá elas, por favor”.
      A cultura duplo sentido oferece outros fenômenos da comunicação interpessoal. Veja-se, a título de ilustração, o sufixo “ives”.
   Em Salvador, não se pode falar palavras terminadas em “u”, principalmente as oxítonas. Independentemente de sexo, idade ou classe social, o indivíduo poderá ser mandado para aquele lugar (lá ele). A pronúncia de uma palavra que dê (lá ela) rima com o nome popular do esfíncter (lá ele) será prontamente rebatida com a amável sugestão.
Para fazer face ao problema, a vogal “u” passou a ser costumeiramente substituída pelo sufixo “ives”.
Destarte, o capitão da Seleção de 2002 é tratado como “Cafives”; o Estádio de Pituaçu virou “Pituacives”; o bairro do Curuzu se tornou “Curuzives”; a capital de Sergipe sói ser chamada de”Aracajives”; e as pessoas que atendiam pela alcunha de Babu, com frequência utilizada na Bahia para apelidar carinhosamente pessoas de feições simiescas, há muito tempo passaram a ser chamadas de “Babives”.
“Autor tão desconhecido, quanto genial”


VISÃO SOBRE O TEXTO “O ESTUDO DO LÁ ELE!”






      Fazendo uma releitura do texto é possível compreender que se trata de um texto bem estruturado. Uma produção que, parece ser resultado de uma observação empírica. Quiçá produzido por um etimologista ou um antropólogo, um estudos de costumes ou cultura popular. Entretanto não deixa de ser o olhar do Eu culto, do Eu civilizado sob o outro morador da periferia, demonstrando uma linguagem da periferia, na qual o estereótipo é ressaltado "desde a mais tenra infância os naturas da Soterópolis são treinados são treinados para identificar frases passíveis de dupla interpretação. “O exótico da linguagem deferente de uma camada periférica da população" moradores da Mata Escura ou do Pau Miudo".
      É de tendência machista chauvinista e preconceituoso com uma pitada homofóbica para indivíduos do sexo masculino "vitória é coisa de chibungo". Demonstra ser fruto de um trabalho de um individuo de uma classe social diferente e que por falta de conhecimento mais aprofundado do campo de estudo, chega a uma conclusão partindo do particular para a generalização, tipo de analise de observação que pode, às vezes, distorcer o resultado do estudo.
      Da mesma forma pode se dizer que, também é uma das formas mais irreverentes do ato comunicativo do soteropolitano, o que não necessariamente é uma linguagem de baixo-vulgar, pois não percebo o uso em qualquer circunstância conversacional na fala diária dos habitantes de Salvador, outrossim só nos momentos de descontração e entre os seus pares .

Escritos: Roberto Mercês - Idéias: Roberto Mercês, Francini Ramos e Pablo Paiva