terça-feira, 6 de dezembro de 2011

GUERRAS NAS LAVRAS DIAMANTINAS: O CERCO AO CAMPESTRE




Autor:
Pablo Paiva












Guerras nas Lavras Diamantinas:
O Cerco ao Campestre

















SALVADOR
06 de dezembro de 2011





ASSUNTO DO ARTIGO E JUSTIFICATIVA



No processo de escolha do tema do meu artigo muitas idéias vieram a minha mente: Afinal, o que retratar? O que e como abordar? Qual dos temas é mais presente na minha vida? Porém, devido aos dez anos que venho dedicando ao estudo e pesquisa, escolhi o seguinte tema: A guerra do Campestre. Sou natural de Seabra-Ba, município sede da vila Campestre, tenho parentes envolvidos nesta guerra e participei, junto com minha mãe, da datilografia e digitação de um dos livros que usarei como fonte de pesquisa, “Campestre Ponto de Partida” de Fabrício D’Oliveira. A junção de todos estes argumentos ao meu desejo de pesquisa por este acontecimento fez presente a minha atual escolha. Estou ansioso para ver o desenvolvimento e o resultado final da pesquisa.







MEU ENVOLVIMENTO COM O TEMA DA PESQUISA

Desde criança gosto muito de fazer trilhas e viagens pela Chapada Diamantina. A princípio, as minhas aventuras eram feitas na companhia do meu pai que, assim como eu, tinha uma paixão pela natureza e pela caminhada.  Desenvolvi assim esta obsessão pelo desconhecido e pelo pouco conhecido.
O meu tema de pesquisa, “Guerras nas Lavras Diamantinas: O Cerco ao Campestre”, foi escolhido a partir de algumas observações que venho fazendo, há algum tempo, sobre a história deste fato e deste vilarejo. O município do Campestre, antiga sede do município de Seabra do qual sou natural, foi há pouco tempo tombado pelo IPHAN por sua participação efetiva na construção da história do coronelismo e garimpo da Chapada Diamantina. Apesar deste reconhecimento, suas histórias não são muito retratadas, principalmente na própria região de Seabra. Os contos permanecem apenas nas memórias dos antigos.
Lembro-me da primeira vez que fui ao vilarejo do Campestre, os encantos que tive ao ver as marcas de balas na igreja, nas casas e em suas portas, as festas do padroeiro das quais sempre participei com o intuito de acompanhar a Banda Filarmônica Amor Divino que tem como maioria dos seus integrantes, membros da minha família. O mais velho deles, Abimael Paiva Filho, é meu tio e presenciou o fato de perto – ele sempre me contava as histórias desta guerra, os heróis, os jagunços e as tocaias. Alguns anos depois, em 1997, eu e minha mãe digitamos e datilografamos as histórias contadas pelo senhor Fabrício D’Oliveira que, ao longo dos seus noventa e poucos anos, estava com sua visão debilitada, mas com uma ótima memória. Estes escritos vieram a compor o seu livro, lançado em 2002, o qual serviu como uma das referências para a minha pesquisa: “Campestre Ponto de Partida”.
Assim, desenvolvi uma paixão por esta história e venho através deste artigo, analisar os fatos sócio-políticos e históricos que compõem esta memória.








A PRIMEIRA RESISTÊNCIA NAS TERRAS DO CAMPESTRE


Para entender o contexto da Guerra do Campestre temos que relembrar os fatos que marcaram a história da Chapada Diamantina: os conflitos sangrentos, as lutas e disputas políticas etc. Antes e durante os primeiros anos da Invasão Portuguesa à América do Sul, nas terras vermelhas do município do Campestre e dos demais territórios da cidade de Seabra, viviam os povos indígenas Cariacãs, Maracás e Paiaiás, que moravam nos altos das serras, deixando suas marcas nos paredões e lajedos rosados com suas pinturas em urucuns. Estas pequenas sociedades, que foram extintas pelos bandeirantes portugueses nos séculos XVI, XVII e XVIII, mostraram aos invasores uma enorme resistência sendo consideradas como as “tribos” mais guerreiras e agressivas do sertão baiano, dando enorme trabalho para serem dominadas. Os confrontos entre os portugueses e os indígenas se transformaram em verdadeiras carnificinas – A terra vermelha do Campestre viu-se lavada com suor, urucum e muito sangue.

“Há casos em que foram degolados aproximadamente 400 índios, somente num combate. Em contrapartida, o sertanista baiano Brás Pires Meira, na segunda metade do século XVI, com setenta homens, numa expedição ordenada por Manuel Teles Barreto à Serra do Salitre, foi morto com toda sua bandeira pelo gentio bravo” (BANDEIRA, R. Luis, 2006, p. 42). 




Guerra

“Enquanto o soldado passa
O menino brinca na praça
Um traz nos olhos a morte
O outro a rosa do amanhã”

(GUIMARÃES, Sindo, Relato dos Ventos, 2000, p.73)




O SURGIMENTO DOS CORONÉIS DA CHAPADA DIAMANTINA

A sede da terra vermelha não se acalmou por tão cedo. Ainda no período monárquico iniciou a epopéia dos coronéis na Chapada Diamantina, sendo os últimos dez anos deste período, os mais marcantes para o surgimento dos principais grupos. As primeiras divergências políticas movimentadas por interesses partidários e a busca incessante pelo poder influenciaram no surgimento dos agrupamentos onde os coronéis detinham o poder supremo sobre a comunidade – cada coronel era a própria lei incorporada numa pessoa só. Detinham uma autoridade que jamais poderia ser desafiada sob pena de castigo ou de uma severa repreensão. O coronelismo na Chapada Diamantina atravessou eras e, no surgimento da República, as novas divisões de poder continuaram favorecendo os coronéis. Esta nova era trouxe o declínio da produção de diamantes levando a população ao medo do empobrecimento e fazendo se intensificar as lutas pela posse de terras e pelo poder político como forma de sobrevivência. A população sertaneja que se via desamparada pelo “Estado”, sem oportunidades de emprego e sem terras para cultivar buscavam em seus coronéis a redenção, figurando-os como deuses do sertão. O apoio era quase sempre condicional. Faziam um pacto de fidelidade onde os coronéis seriam seus senhores e a população sertaneja faria de tudo para seu senhor: trabalhavam, matavam, guerreavam, torturavam etc. Surgiram grandes agrupamentos de jagunços em diversos pontos da Chapada Diamantina.
Dentre os coronéis e seus jagunços, destacavam-se: o coronel Felisberto Sá, líder da família Sá em um feudo que se estendia por terras latifundiárias onde estavam os garimpos mais ricos das Lavras Diamantinas de Lençóis; o coronel Clementino Pereira de Matos, chefe da família Matos na região da Chapada Velha; o coronel Militão Rodrigues Coelho que era chefe político do município de Barra do Mendes; o coronel Manoel Fabrício de Oliveira do município do Campestre; e o coronel Francisco de Paula Ribeiro e o seu filho Heliodoro de Paula Ribeiro que eram chefes do Cochó do Malheiro.
Nas terras em que hoje estão os municípios de Lençóis, Andaraí, Mucugê e Palmeiras, o cultivo do diamante era a maior fonte de riquezas. Formavam-se casarões nas pequenas vilas, suas elites iam e viam da Europa para fazerem comercio de diamantes, realidade diferente dos garimpeiros que morriam nas minas e catras. Nos demais municípios, em Cochó do Malheiro, Cochó do Pega e Campestre (hoje pertencentes à cidade de Seabra), assim como na Chapada Velha e Barra do Mendes, os coronéis de enriqueciam com a exploração da população sertaneja no manejo do gado, na agricultura e no comércio. Dentre estes se destacava o município de Cochó do Malheiro por na época ter o maior mercado de gado do sertão da Bahia. E foi em meio a este contexto social que começaram a surgir batalhas sangrentas no sertão da Bahia.



  

  


AS PRIMEIRAS BATALHAS ENTRE OS CORONÉIS E O APARECIMENTO DAS ALIANÇAS DE GUERRA

O primeiro desafeto ocorreu, em meados da década de 1890, quando Heliodoro de Paula Ribeiro resolveu ingressar na política fazendo oposição ao coronel Felisberto Sá de Lençóis. Heliodoro se valia do apoio do então governador do estado da Bahia, Luiz Vianna, como base para a sua astúcia e força na política regional. Para ajudar na defesa do município de Cochó do Malheiro, que ficava situado entre as antigas Vila Bela das Palmeiras e Vila Agrícola de Campestre, Luiz Vianna deslocou um esquadrão de polícia que ficara aquartelado para garantir defesa à dinastia da família Ribeiro. Heliodoro, nesta época, desfrutava de tamanho poder e riqueza por ser o Cochó do Malheiro um ponto estratégico da região. Todas as estradas que se dirigiam às Lavras Diamantinas passavam pelo Cochó. E foi com muita ousadia que ele resolveu fazer um negócio de gados que poderia trazer-lhe fortuna ou miséria. Aproveitou o bom nome que o seu pai, Francisco de Paula Ribeiro, tinha como crédito para compra de centenas de gado em Canoas, atual Igarité. O velho Francisco, ao saber da negociação, caiu doente e se viu preocupado com a dívida que estava por vir. Porém, para a sorte da família Ribeiro, o gado esteve em alta e o Heliodoro conseguiu uma fortuna com seu negócio, fazendo uso deste dinheiro para criar um novo exército de jagunços.
Apesar da boa sorte e dos bons ventos que estavam soprando o Cochó do Malheiro, Heliodoro não contava com a má sorte que poderia vir a pairar sobre o seu município caso o apoio do governador do estado fosse-lhe negado. E, para o seu desespero, este fato ocorreu: Luiz Vianna, por desentendimentos políticos e comerciais, deixou o apoio aos Ribeiros de lado. Sabendo do ocorrido, o coronel Felisberto Sá reuniu homens, juntamente com o coronel Manoel Fabrício de Oliveira, para atacar o Cochó do Malheiro. Heliodoro rapidamente foi até a Chapada Velha se encontrar com o coronel Clementino Pereira de Matos, convidando-o para cuidar dos seus negócios de gado. Clementino aceitou o convite, mas foi ao encontro dos coronéis Manoel Fabrício e Felisberto Sá em busca de salvo conduto para os seus negócios. Os mesmos disseram-lhe que, apesar da existência da rixa política com Heliodoro, poderia seguir com seus negócios tranquilamente. Uma vez aceito o convite, Clementino colocou a família Matos em um conflito armado com consequências desastrosas.
Começaram então as emboscadas, os conflitos, os assassinatos, os estupros, as torturas, e assim, aquela terra avermelhada voltou a ser lavada com o sangue sertanejo.  Estava declarada a guerra: os coronéis Felisberto Sá e Manoel Fabrício impuseram uma perseguição implacável ao coronel Heliodoro de Paula Ribeiro. Por outro lado cresceram as disputas entre o coronel Clementino Pereira de Matos e o coronel Militão Rodrigues Coelho pelo controle dos territórios da Chapada Velha e de Barra do Mendes. Neste palco de embates houve batalhas marcantes que mudaram o panorama político da Chapada Diamantina. Na busca excessiva por Heliodoro, as tropas de jagunços de Manoel Fabrício e Felisberto Sá caíram em uma emboscada ao resolverem pernoitar na fazenda do major Cândido Leão, próximo ao Cochó do Pega. Montalvão, líder dos jagunços de Heliodoro, considerado como um filho pelo coronel Francisco de Paula Ribeiro, se aproveitou da escuridão da noite para fazer reféns Francisco de Sá, filho do coronel Felisberto, e outros do seu grupo. Fez o assalto sem disparar uma bala sequer. Este e outros fatos vieram a criar lendas sobre a “valentia” do jagunço Montalvão do Cochó do Malheiro.
Sabendo que seu filho havia sido capturado pelas tropas inimigas, Felisberto Sá elaborou um plano maquiavélico para invadir a fazenda Milagres, na Chapada Velha, propriedade da família Matos, na tentativa de capturar prisioneiros que poderiam ser trocados por seu filho. Porém houve resistência ao ataque à fazenda Milagres e os jagunços de Felisberto de Sá voltaram para Lençóis sem conseguirem capturar nenhum prisioneiro. Neste ataque morreu o Canuto, irmão de Clementino de Matos. Não lhe restava alternativa e Felisberto pediu ajuda ao governo do estado. “O conselheiro Luiz Vianna atendeu de pronto e mandou o cel. Policarpo para fazer um acordo com os beligerantes e libertar os reféns”. (QUEIROZ, C. de Oliveira, p.24). Francisco de Sá voltou a Lençóis e Clementino decidiu retirar suas tropas para a Chapada Velha. Resolveu também passar a administração das fazendas de Heliodoro de Paula Ribeiro a outro sertanejo. A paz não durou e, pouco tempo depois, Felisberto de Sá invadiu o Cochó do Malheiro destruindo por completo o município, não deixando uma propriedade em pé, incendiando as casas, transformando tudo em ruínas.
Após esta batalha, Felisberto de Sá resolveu acabar de vez com seu desafeto. Para isso, resolveu mandar alguns jagunços para matar Heliodoro de Paula Ribeiro, que havia fugido do Cochó do Malheiro. Porém, seus jagunços estavam amedrontados com a figura do seu “cão de guarda” chamado Montalvão. Felisberto de Sá então resolveu que primeiro teria que matar Montalvão, deixando assim o caminho livre para os assassinos. Enviou alguns jagunços à Queimadinhas, onde estavam escondidos o Montalvão e o Heliodoro, estes fizeram amizades com a “lenda viva”, se embriagaram, envenenaram seu vinho e, quando este já estava sob a ação do veneno, recebeu uma bala no ouvido. Pouco tempo depois Heliodoro foi preso e levado a um júri em Campestre. Neste Júri, Clementino de Matos também foi julgado e, assim como Heliodoro, foi absolvido.
Clementino de Matos então resolveu atacar seu desafeto Militão Coelho em Barra do Mendes. Entrou na praça em um dia de festas com seus jagunços tocando caixas e tambores, fazendo uma algazarra tremenda, empunhando uma bandeira e, ao chegarem à praça do vilarejo, jogaram tudo no chão e pegaram suas armas. “Foi um salve-se quem puder; não houve resistência” (QUEIROZ, C. de Oliveira, p.25). Neste panorama começaram a fortalecer as alianças entre os coronéis. Para terem “paz”, deveriam atacar seus inimigos ou dormirem sempre “com um olho aberto”. Em retaliação ao ataque de Clementino a Barra do Mendes, seus inimigos (os coronéis Manoel Fabrício de Oliveira, Felisberto de Sá e Militão Coelho) fizeram diversas investidas à Chapada Velha, mas todas sem sucesso. Neste período Militão Coelho aumentou os limites do seu território desafiando a fortaleza da Chapada Velha e mandando sempre seus recados desaforados à tribo dos Matos.
Alguns anos depois, Felisberto Sá morreu em Lençóis e foi substituído por seu filho César Sá. Este triste fim também chegou à tribo dos Matos – Clementino, já velho e doente, mandou chamar, em Morro do Chapéu, o seu sobrinho Horácio de Queiroz Matos para passar a chefia da família. Assim, entrou neste emaranhado de batalhas e tocaias, o coronel Horácio de Matos, um jovem valente que usou o seu poder para mudar o quadro político da região da Chapada Diamantina. A zona das Lavras enfim gozou por pouco tempo de relativa “tranquilidade”, entre 1895 a 1912 – não houve, durante esse tempo, conflitos de importância. Porém os trabucos não ficaram calados.








ERA DE TOCAIAS E ASSASSINATOS NAS LAVRAS

Com as divergências políticas formadas em toda a Chapada Diamantina começou uma época de horror onde muitas pessoas foram assassinadas. A jagunçada estava solta e naquele tempo se matava até por um saco de farinha. Os crimes se multiplicavam e aos assassinos restavam buscar salvo conduto a um dos chefes que os aceitavam sob condição de “fidelidade eterna”. As estradas estavam em constante perigo. As feiras na maioria das vezes acabavam mais cedo por causa de um assassinado em público – muitos eram estripados em feiras livres para que os jagunços reforçassem seus valores horrendos perante o povo sertanejo; surgiam as lendas, os heróis e vilões, reforçados pelas histórias de horror e valentia contadas pelo povo sertanejo.

“Ai quem tivesse contas para acertar com Pedro Mariano, José Montalvão, Juvenal Cuscuz, José Beiço Rachado, Vitor Matos, José Dentão, Carvão de Pedra, Tanajura, José Volta Grande, Tomás Rola, Azulão, Antônio da Jumenta, Miguel Umbuzeiro e muitos outros”. (BANDEIRA, R. Luis, 2006, p. 100).

Eis que surge a figura do coronel Horácio de Matos que:

“propõe, através de um entendimento amplo, de interesses fundamentais das duas comunidades (Barra do Mendes e Chapada Velha), num clima de confiança mútua que ponhe termo àquelas desavenças, inaugurando-se doravante para ambas um período de trabalho promissor” (MORAES, Walfrido, 1991, p. 59).

Porém, a paz durou pouco. Militão Coelho na sua excessiva busca ao poder refez seu exército e decidiu marchar sobre a vila de Brotas de Macaúbas tomando o poder deste vilarejo e fazendo acontecer. Horácio soube do fato e resolveu entrar em guerra com Militão Coelho, na tentativa de acabar de vez com o antigo inimigo do seu tio Clementino. Mas como um golpe aos seus planos, Horácio recebeu a notícia de que o seu irmão Vitor Matos teria sido assassinado no povoado de Olho D’Água do Seco por um grupo de jagunços. As noticias que chegaram aos seus ouvidos diziam que o assassinato foi encomendado por Pedro Mariano, Manoel Fabrício, Virgílio Chaves e Antônio Jesuíno – esta notícia é relativa e varia muito de uma fonte de pesquisa à outra. Creio que possa existir outra versão que a história oficial não conhece. O escritor Ivan Guanais de Oliveira, um dos que herdaram o sobrenome “Oliveira” do coronel Manoel Fabrício de Oliveira, em seu livro “Recontando minha terra, minha gente”, deixa em evidência este fato por duvidar da cobertura dos acontecimentos feita pelos escritores que trataram da vida do coronel Horácio de Matos. Para ele os escritores Olympio Barbosa, Walfrido Moraes, Américo Chagas e Claudionor Queiroz (aos quais ele se refere como horacistas, a exceção de Américo Chagas) não deram àquele fato histórico tal simplificação, porquanto uma negociação entre duas partes. Ivan Guanais crê que os fatos merecem outro tipo de reflexão.
Antes de relatar o que ocorreu após o coronel Horácio de Matos saber do assassinato do seu irmão, venho-lhes apresentar Vitor Matos. Nesta época de assassinatos, tocaias e covardias, surge Vitor. Era um sujeito de estatura mediana, falava com os dentes semicerrados. De cor pálida, amarelada, cabelos crespos, não sorria às gargalhadas, “sorria arreganhando os lábios e contraindo os músculos faciais. Não bebia nem fumava. Hospitaleiro. Trabalhava no garimpo e quando preciso arranjava alguma peça de sola ou couro cru para arreios” (QUEIROZ, C. de Oliveira, 1985, p. 30). Era uma pessoa muito má e que não gostava de lutar. Quando achava ser válido, matava sem piedade. Ele mesmo dizia que só matava gente ruim. Por desavenças com sua família, Vitor há muitos anos havia saído do “ninho dos Matos”, na Chapada Velha, sem destino. Seu paradeiro era ignorado por muita gente. Foi morar por um tempo na casa da viúva do seu tio Canuto de Matos, que nesta época estava casada com Virgílio Silva. Certo dia Vitor teve um desentendimento com Virgílio e deu-lhe um tiro em seu braço. Não satisfeito, queria matar seu parente, mas não fez devido à intervenção de amigos. Diante do fato não pode mais continuar em Bananeiras e partiu com uma amante e uma criança pequena. Ao chegar ao município de Tapera matou um indivíduo, pelo qual não sabemos a causa. Prosseguindo para a Chapada Velha, matou a sua amante e pés a criança, que dizem ser seu filho, para mamar no cadáver enquanto ia avisar aos moradores mais próximos. Vitor era procurado por toda Lavras pelas suas atrocidades. Diziam que ele já tinha matado mais de 40 pessoas em seus 35 anos de vida. Horácio era o oposto moral de Vitor e isto causava, em Vitor, um sentimento de ódio e inveja.
Certa Vez, ao estar de passagem por Cochó do Pega (hoje cidade de Seabra), Vitor estava em um bar bebendo com alguns amigos. Chegou à porta um sujeito, chamado Silvino, que, ao saber que aquele era o famoso Vitor Matos, parou em sua frente dizendo:
_É você que é o Vitor de Matos? Que dizem ser valente? Silvino então pegou o seu chapéu de couro e bateu as correias na cara de Vitor.
_Você está louco? Tá querendo morrer? Respondeu Vitor.
Retiraram Silvino que saiu provocando e foi buscar refúgio na Estiva sendo apadrinhado pelo chefe local, Pedro Mariano. Em seguida Vitor foi à busca de vingança. Um dia, já no povoado de Estiva, Vitor topou de frente com Silvino em uma esquina, deu-lhe uma punhalada certeira varando-lhes as tripas e o finalizou com dois tiros. Os jagunços de Pedro Mariano cercaram à vila para que Vitor não fugisse. Ele aguardou por três dias e, em uma noite, fugiu para o Poço de Manoel Félix (hoje cidade de Iraquara) onde matou uma moça e um cunhado do jagunço apelidado Cuscuz, fugindo logo após para Olho D’Água do Seco. Cuscuz era jagunço de confiança de Pedro Mariano e Manoel Fabrício, considerado como um dos melhores do grupo. Assim, aproveitando o sentimento de vingança de Cuscuz, Pedro Mariano que também desejava a morte de Vitor pelo assassinato de Silvino, mandou o jagunço à sua caça. Armaram a tocais, separaram as armas, definiu o grupo de jagunços e partiram a procura do Vitor Matos.
Um dia Vitor estava sentado em um balcão, quando um menino lhe entregou uma carta. Começou a ler e recebeu dois tiros pelas costas. Cuscuz sabia o que estaria por vir e reuniu seus companheiros rumo ao Campestre em busca de cobertura do coronel Manoel Fabrício.  Este fato foi o estopim para a primeira investida dos Matos ao Campestre.






CERCO AO CAMPESTRE

O coronel Horácio de Matos ficou furioso com o assassinato do seu irmão, Vitor Matos. Sentindo-se mordido e traído pelos supostos mandantes do crime, viu que não poderia ficar indiferente à morte trágica do irmão porque se assim ficasse, seria também um crime não lutar pela honra da sua família. Primeiro foi buscar uma resposta/ação da justiça regional que, naquela época e região, não funcionava muito bem. A justiça era feita à bala. Soube que os jagunços que mataram Vitor estavam em proteção no Campestre e começou a pensar no que poderia fazer para que a sua justiça fosse feita. Meses se passaram e nada ocorria. Em 1914, mandou alguns jagunços atacar a cidade, mas estes foram recebidos à bala e voltaram à Chapada Velha.
Então foram os primeiros mandatos de prisão ao Termo de Campestre e não obtiveram nenhuma resposta. Foi então outra leva de mandatos e nada aconteceu. O famoso “disse me disse” começou a circular pelas Lavras Diamantinas, muitos diziam que o Horácio não tinha a mesma garra do velho Clementino Matos. Finalmente foi até o Campestre a terceira leva de mandatos, levados agora por um Oficial de Justiça. “O documento é entregue ao Pretor do Termo em plena praça pública, onde se encontra palestrando com o chefe local o magistrado, com o mais profundo desdém, rasga-o ostensivamente, e tange os pedaços ao vento da manhã.” (MORAES, Walfrido, 1984, p.64). Horácio fica enfurecido ao saber do ocorrido e resolve ir ainda mais longe: publica no Diário de Notícias da capital, em 28 de junho de 1915, um manifesto ao Governador do Estado, relatando os acontecimentos e pedindo uma solução:

“[...] Cruzados os braços das autoridades acerca de tão bárbaro crime e acoitados em Campestre os seus autores, dali começara a sair recados e mais recados para os membros da família Queirós Matos, recados dentre os quais uns simplesmente desaforados outros ameaçadores e outros mais imorais. E enquanto os parentes do morto descansavam na esperança da repressão legal do crime, o que não se verificou, eis que os homens de Campestre, sonhando com a possível vingança dele, transformaram a cidade, por meio de aliciamento de jagunços, construção de trincheiras, abertura de fojos, valados e subterrâneos, em verdadeira praça forte.” (MORAES, Walfrido, p.64)

E após não encontrar ação na justiça, Horácio resolve marchar em direção ao Campestre. Reúne seus homens e tem, para a sua surpresa, a vinda do seu pai Tiano Matos que queria se vingar pessoalmente pela morte do seu filho Vitor.
O município do Campestre, que fica a mais de novecentos metros acima do nível do mar, está situado exatamente na cordilheira central da Chapada Diamantina, enquanto que a Chapada Velha fica no município de Brotas de Macaúbas, ou seja, nas vertentes ocidentais, a leste da Serra das Mangabeiras. A distância entre os limites do coronel Horácio de Matos e do coronel Manoel Fabrício de Oliveira é de, mais ou menos, 150 quilômetros. O terreno é muito acidentado e protegido por rios e serras que servem como excelentes fronteiras naturais.
Partiram da Chapada Velha rumo ao Cochó do Pega, há 17 quilômetros do Campestre, e ao chegarem não encontraram resistência. A essa altura o coronel Manoel Fabrício soube da investida e começou a preparar a sua defesa. As tropas dos Matos levantaram logo cedo e partiram rumo às belas serras do Campestre. No caminho ao Campestre, Horácio encontra alguns inimigos do coronel Manoel Fabrício, que se agrupam à tropa aumentando seu contingente. Os Matos tinham como seus aliados os irmãos de Horácio, Isidoro, Francisco e Arquimedes, Heliodoro de Paula Ribeiro, Manoel Querino de Matos, Euzébio Gaspar de Souza (chefe de Pau-Ferro) e outros chefes sertanejos. Já o coronel Manoel Fabrício tinha como seus aliados o Pedro Mariano (chefe de Estiva), Jovelino José de Souza (chefe de Palmeiras dos Mendes), o Cap. João Pedro de Souza Santos (do município de Descoberto) e dentre outros. O coronel Militão Rodrigues Coelho, apesar de ser amigo do Manoel Fabrício, não pode ajudá-lo devido a um tratado de paz que tinha assinado com Horácio, assim que os Matos souberam da morte de Vitor, e da impossibilidade de combater as duas frentes ao mesmo tempo: o Campestre e as tropas de Militão nos limites com a Chapada Velha.
A tribo dos Matos traça um plano: Isidoro de Matos e Arquimedes atacarão a cidade pelo noroeste para atrair a resistência do Campestre. Feito, Hermenegildo de Souza (um dos inimigos do coronel Manoel Fabrício) deverá avançar com seus homens pela parte oriental. Os Matos começam o ataque, porém as frontes feitas pelos homens de Hermenegildo de Souza falham, e muitos fogem por suas vidas. Assim, a resistência se torna heróica e alucinada de tal jeito que Isidoro faz a retirada imediata dos seus homens. Os jagunços dos Matos corriam desesperadamente em meio a caatinga, rasgando suas roupas e peles nas árvores “unhas-de-gato” (arvore espinhosa típica da região). Era noite sem lua, e as tropas invasoras se viram perdidas em meio à escuridão.
O dia fica claro e todos voltaram às posições anteriores. Ficaram próximos ao Campestre em uma das suas serras entrincheirados, a espera de uma nova investida ao ataque. Porém, nestas circustâncias estavam em desvantagem, pois a tropa do coronel Manoel Fabrício sabia das suas posições e voltaram toda a sua defesa em sua direção. No dia seguinte travou-se um tiroteio sem intervalos longos. Os moradores do Campestre, a esta altura, estavam todos em suas casas e posições de guerra. As mulheres e crianças ficavam presas para não correrem riscos e os homens ficavam entrincheirados nas sacadas, janelas, fortes, valas e na igreja. Fracassou a primeira investida de Horácio de Matos contra os domínios de Manoel Fabrício de Oliveira. A primeira derrota dos “Mandiocas” (como eram chamados os Matos) para os “Mosquitos” (denominação aos homens do Manoel Fabrício).
Horácio se vê desiludido com a derrota na batalha. Seus homens se mostravam desencorajados e muitos deles estavam feridos. Porém, colocam seus homens novamente em formação e novamente temos um dia inteiro de tiroteios sem uma trégua sequer e não conseguem sucesso na investida. Horácio então resolve se preparar melhor para a investida e manda alguns dos seus homens ao São Francisco para adquirir mais munições, homens e mantimentos. Da defesa heróica do Campestre, surgiram algumas lendas a exemplo dos dizeres de que na vila havia passagens subterrâneas. Fabrício D’Oliveira, em seu livro “Campestre Ponto de Partida”, explica como era feita a resistência do povo do Campestre:

“Dizem que, naquela época, existiam subterrâneos em Campestre. Não era bem assim. Como as casas eram contíguas, em alguns locais, abria-se um buraco na parede, estabelecendo-se uma passagem entre elas. De uma rua, por exemplo, utilizando-se desse artifício, chegava-se até o forte. Quando a casa era distante da outra, escavava-se uma valeta e, rastejando-se através dela, a gente chegava ao destino” (D’OLIVEIRA, p. 20 e 21).

No povoado do Campestre as mulheres receosas contrastavam com a valentia e vigor dos homens. Seu chefe, o Manoel Fabrício, já conhecia muito bem a tribo dos Matos, dos tempos de batalha com o velho Clementino, e sabia que, se o jovem Horácio, ao longo dos seus trinta e três anos, tivesse herdado a garra do velho, a batalha não acabaria tão depressa. Definiu novas posições, remanejaram homens, armamentos e munições e assim, permaneceram na defesa heróica. Para melhorar sua defesa, manda alguns mensageiros ao encontro dos seus velhos aliados e amigos para que mande forças e recursos. Um destes é o coronel César de Sá, filho do seu velho amigo Felisberto Augusto de Sá, que intercede junto ao governador do estado, Dr. J.J. Seabra, no sentido de que o mesmo lhe envie tropas policiais para ajudar na defesa. O Dr. Seabra, que estava em seu primeiro mandato (1912-1916) manda uma força policial comandada pelo Tenente Pedra ao Campestre. Os mesmos chegam, misturam-se com os Mosquitos e preparam trincheiras, emboscadas, resistências e fortificações. Formada a defesa, Horácio e seus homens ficam estacionados nas serras, escondidos da sua visão, aguardando o seu inimigo. Faz uma guerra psicológica, aguardando o momento de saturação do povo do Campestre.
Os homens passam dias intermináveis nas trincheiras sem uma ação se quer. Volta e meia havia algum disparo, alguém era baleado etc. Todos atentos e sedentos, a espera do surgimento de um inimigo ao alcance das suas miras. Na cidade, praticamente paralisada, ninguém mais trabalhava ninguém mais produzia nada. É neste panorama que o Fabrício D’Oliveira, escritor do livro “Campestre Ponto de Partida” conseguiu escapar com sua mãe e irmãos: “No primeiro cerco ao Campestre, lembro-me muito bem que minha mãe nos prendeu, a mim e a meus irmãos, no quarto, com um baralho” (D’OLIVEIRA, Fabrício, 2002, p. 20). Logo depois, seu pai fez um acordo com o coronel Horácio de Matos em Cochó do Pega para retirar sua família do Campestre. A tribo dos Matos suspendeu o ataque por 24 horas e diversas famílias deixaram a Vila Agrícola do Campestre.

“O cerco continuava e a situação foi chegando a um ponto crítico. Já faltavam água e víveres. Chegou o momento de desespero. Os sitiados tinham de abandonar suas posições defensivas. Tinham de expor suas vidas, numa última e decisiva cartada” (D’OLIVEIRA, Fabrício, 2002, p. 21 e 22).
        

O cerco se prolonga por diversos dias e os homens do Campestre se vêem em meio ao desespero. “O rolo compressor despenca sobre o Campestre” (MORAES, Walfrido, 1984, p. 67). Os Matos se dividem em tropas e conseguem cobrir todas as saídas da vila. O sítio é perfeito e magnífico. Mas, à mesma altura, a resistência se constrói. Manoel Fabrício luta ao lado de sua esposa, Mãe Biosa, que lhe ajuda a recarregar os cartuchos. Os dias e noites passam e os Mandiocas não conseguem adentrar no Campestre. Passam-se semanas e o tiroteio não para. A cada dia dezenas de novos cadáveres mortos ao relento, na Praça do Campestre e nos pés e altos das serras.
Horácio tenta tirar proveito do sítio e não desiste da investida. Ele sabe que, a qualquer momento, acabariam todos os recursos e a fome avassalaria a todos. Suas tropas estavam bem servidas e a cada novo dia chegavam novos mantimentos. Na vila começa a haver desentendimentos entre os jagunços e polícia por causa do racionamento de água e comida. Sabendo disso, Horácio passa a usar uma tática maquiavélica ao mandar seus jagunços jogarem mantimentos nas trincheiras onde sabem que existem militares. E então, com estas “gentilezas”, ele faz um acordo com a tropa do Tenente Pedra, para que saiam sob salvo conduto na manhã seguinte pelo caminho que leva à Churé (povoado da cidade de Seabra). Os militares aceitam e, no caminho de volta à capital, encontram outra leva de militares que fora mandada pelo governador do estado. Ao verem a situação dos soldados do Tenente Pedra, todos rasgados, feridos e famintos (verdadeiros maltrapilhos), a tropa desiste da marcha e volta junto com os desertores para a capital. Sendo assim, os homens do governo deixaram Manoel Fabrício entregue à própria sorte. Outra esperança surge em meio à caatinga: trezentos homens sob o comando do Tenente Pinheiro chegam ao local do sítio. Porém, desatentos, vão de encontro ao grupo dos Mandiocas e levam uma saraivada de balas que surgem de todos os lados. Os soldados correm desesperados, em pânico e desistem da investida. Sabendo que estava em vantagem, Horácio aumenta o fogo ao Campestre.
Devido ao fracasso das expedições, o Governo do Estado convoca os chefes regionais das Lavras Diamantinas – muitos amigos de Horácio – e solicita a interferência com o objetivo da negociação de paz entre os dois grupos. O coronel José Pedreira Lapa foi nomeado Delegado Especial e chegou até as trincheiras. Discutiu com os Mandiocas e com os Mosquitos e chegaram a um acordo: O cerco seria desmontado caso os assassinos de Vitor Matos fossem punidos. Nestas condições, o sítio foi desfeito sob acordo que foi celebrado em uma ata lavrada no livro de atas do Conselho Municipal. “Ao penetrarem em Campestre, os pacificadores ficaram admirados da resistência heróica dos sitiados, que mesmo em estado de inanição vinham mantendo na luta, um moral elevado e profundamente compadecidos do seu definhamento físico” (MENDONÇA, Edizio, 2006, p. 20).
As batalhas não pararam por intermináveis 42 dias, resultando em dezenas de mortos e feridos dos dois grupos. Manoel Fabrício perdeu um filho nesta guerra e Horácio de Matos perdeu um irmão. Depois de feito o acordo, Horácio e seus parentes voltaram para a Chapada Velha na esperança de que o acordo fosse cumprido. Porém Manoel Fabrício mandou o Cuscuz ir embora. Horácio ficou calado e magoado. Ficou aguardando o momento para uma nova investida. Ficou a pensar, a calcular, fazendo jus ao uso de um provérbio ao qual sempre falara: “O que tem de ser, traz força”.



  



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



BANDEIRA, R. Luís. Chapada Diamantina - História, Riquezas e Encantos, 4º ed. Salvador, BA, 2006.

D’OLIVEIRA, Fabrício. Um Rábula em Defesa das Viúvas, Salvador, 1996.

D’OLIVEIRA, Fabrício. Campestre – Ponto de Partida, Salvador, 2002.

GUIMARÃES, Sindo. Relato dos Ventos, Salvador, 2000.

MENDONÇA, Edizio. Campestre e Seus Horrores, Salvador, 2006.

MORAES, Walfrido. Jagunços e Heróis, 3º ed. Brasília, 1984.

NETA, Maria. Iraquara – Ontem, Hoje e Sempre, Salvador, 2004.

OLIVEIRA, I. Guanais de. Recontando – Minha Terra, Minha Gente, Salvador, 2002.

PINA, Zenilda. Encontro com a Villa Bella das Palmeiras, Salvador, 2005.

QUEIROZ, C. de Oliveira. O Sertão Que Eu Conheci, Salvador, 1985.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Globalizações Possíveis: Novas Alternativas de Trabalho Na Contemporaneidade

Ensaio realizado sobre as relações de trabalho no mundo contemporâneo, com o objetivo de analisar e refletir alguns dos problemas encontrados. Este trabalho foi apresentado ao Curso Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades, no componente HACA 34 - Estudos Sobre a Contemporaneidade. Orientador Específico: Mauricio Matos



Quais adventos históricos foram essenciais para a mudança das relações do trabalho? O que os sistemas econômicos influenciaram? A modernidade foi essencial para chegarmos com novas categorias do trabalho na contemporaneidade. O mercado de emprego ao serviço dos donos dos meios de produção fundamentalmente mudou e ficou mais complexo, presenciamos modelos altamente excludentes de uso da tecnologia na ponta da hiperespecialização convivendo com iniciativas de construção popular da economia solidária aplicando a mesma tecnologia a serviço da inclusão. Cada um com seus próprios valores e ferramentas. De um lado a fragmentação, a terceirização, flexibilização a serviço da busca do lucro cada vez maior; e na reação a este modelo, as redes de apoio solidário, a educação da práxis, pressão por políticas públicas para um modo de produção baseado no trabalho para a manutenção e crescimento da coletividade, para o bem comum, que busca outra possibilidade revolucionária. Será que o problema está na tecnologia e na poupança do trabalho humano que ela implica, ou no monopólio da tecnologia, este concentrado nas mãos dos capitalistas favorecidos por governos e políticas neoliberais que os apóiam?
Desde o século dezesseis, modificam-se a visão de tempo e do trabalho. A queda do sistema feudal resultou em um novo sistema econômico, na reforma protestante, em novas práticas comerciais e em uma nova classe que entrou em ascensão (a burguesia). Martinho Lutero6, um dos principais nomes do protestantismo, evidência o indivíduo sendo responsável pelo seu próprio tempo vivido particular. Logo, a necessidade de trabalhar duro torna-se virtude devido à idéia de ética atrelada ao trabalho – este pensamento surge com o Calvinismo que dizia que o homem, para mostrar seu valor, deveria sempre continuar tentando alcançar esta “virtude” através do trabalho. Para Marx Weber, através desta autonegação é que se iniciam as práticas do capitalismo, com base na acumulação de riquezas onde é preciso poupar mais e gastar menos, gerando competição entre os homens. Tudo isto vêm a reforçar a condição que temos até os dias atuais nas sociedades humanas: o sentimento de dignidade relacionado ao trabalho. Condição esta que modificou todos os eixos sociais. “O que engrandece e enobrece o homem é o trabalho” afirma Calvino, criador dessas condições que possibilitou o aparecimento do capitalismo moderno.
O pré-modernismo possuía essa antiga ética do trabalho, um mundo de passível estabilidade onde se trabalhava e idealizavam-se projeções através do acumulo do seu salário ou lucro onde a realização e satisfação era algo para se buscar. Esse “[...] adiamento é interminável, a autonegação no presente inexorável, as recompensas prometidas jamais chegam” (SENNETT, 1999, p.123). As instituições eram sólidas, existia-se uma rotina, as suas experiências significavam muito para o trabalhador, moldavam a história como se tivessem conquistado algo. O “eu” trabalhador era o dilema: ele era responsável por suas conquistas e por suas realizações, se não o conseguisse é porque não era tido como digno.
O Modernismo e sua nova economia política aceleraram o tempo; o Fordismo e o Taylorismo fizeram os indivíduos trabalharem em grupo e criar um novo perfil de funcionários - destrói-se a burocracia e inicia a flexibilidade. As instituições procuram se inovar adotando a tecnologia como forma de ampliação de controle onde o objetivo é colocar tudo cada vez mais rápido, variando o mercado e criando produtos com maior fluidez das informações. Outra característica é a concentração de poder sem centralização, o poder em vários grupos, mas concentrada em um só. Sennett ressalva que:

“A moderna ética do trabalho concentra-se no trabalho de equipe. Celebra a sensibilidade aos outros, exige “aptidões delicadas”, como ser bom ouvinte e cooperativo; acima de tudo, o trabalho em equipe enfatiza a adaptabilidade às circunstâncias. O trabalho de equipe é a ética de trabalho que serve a uma economia política flexível... o etos do trabalho permanece na superfície da experiência. O trabalho de equipe é a prática de grupo da superficialidade degradante. (SENNETT, 1999, p. 118).


O cenário consiste então, em indivíduos cada vez mais treinados, sua disciplina precisa se adaptar a um fluxo, as qualificações básicas: verbais e saber lidar com tecnologia, deter de um perfil de simpatia e carisma para o trabalho em equipe, apesar de cada um com suas especializações e individualidades, agem como ‘aldeias’ cada um exerce uma tarefa, assim no fim do trabalho todos são teoricamente responsáveis pela produção, pois surge a ideia fictícia de que chefes e trabalhadores não são antagonistas; o chefe passa a ser o ‘líder’, o administrador, o treinador. Logo, temos a fantasia de que todos seriam vitimas - a dominação de todos os funcionários legitima, sem a precisão de autoridade. As regras em jogo do trabalho em equipe são feitas à medida que prosseguem os resultados do saldo final. Não existem mais manuais, mas todos enfatizam o desempenho imediato e o curto prazo. Apesar dessa flexibilidade de regras e medidas, todos procuram e zelam pela manutenção da natureza fundamental do sistema e pela organização básica da estrutura de poder das empresas.
A tecnologia seria então um dos maiores modificadores sociais. Vem como forma de ampliar o controle sobre um número maior de subordinados, diminuindo o numero de administradores, reduzindo empregos e gerando desigualdades. O retorno financeiro, para as empresas, muitas vezes não é rentável - a organização acaba perdendo o rumo com tanta instrumentalização. Para acelerar a produção, foi fundamental colocar, cada vez mais rápido, uma maior variedade de produtos no mercado e aumentar a rapidez das comunicações para fornecer informações atualizadas de mercado. Hoje, essa flexibilização não se concentra apenas no jogo e nas medidas para alcance da finalização de um projeto. O novo capitalismo destrói a linha do tempo, a rotina concentra-se apenas no trabalho, a vida particular é moldada através da atividade profissional que exerce. O individuo não tem a segurança de um emprego apenas com uma especialização, este precisa se adequar ao mercado, sempre em ciclos de mudança, exercendo uma função em um dia e, no outro, sendo capacitado a outro seguimento. Esse mundo de incertezas vem criando uma reorganização. O caráter que tanto se prezava com os antigos sociólogos, como Marx Weber, é destruído. Destacam-se as ironias e ficção, contribuindo para a estagnação da cidadania, perda dos laços sociais, crises políticas e econômicas.
O ser humano na pós-modernidade vem vivenciando cotidianamente contínuas sensações de insegurança, relacionadas e presentes nos seus meios sociais. As formas de analisar, vivenciar, refletir sobre o mundo que o cerca, suas relações afetivas, relações eu – outro, eu- eu, vêm se alterando de forma altamente perceptível nos dias contemporâneos. O ser humano experimenta, cada vez mais, uma aceleração do tempo social, ouve-se cada vez mais a frase: “eu não estou cabendo no meu dia” ou “ o dia para mim deveria ter trinta horas”, e também essa, “nossa, tudo mudou de dez anos pra cá, parece que passou muito mais do que isso, parece que foram vinte anos em dez, antigamente não era assim”. Variados fatos, modos de organização social, acarretam esses pensamentos. Novos meios de comunicação diminuíram, ou em alguns casos aniquilaram, a questão de tempo-espaço. O evento de 11 de setembro pôde ser visto simultaneamente em diversos lugares do mundo. A internet vem mudando o modo como as pessoas encaram as relações sociais, físicas, afetivas entre outras, encurtando distâncias e promovendo trocas antes impensáveis. O trabalho não é mais o mesmo exercido, novos produtos são criados, ao mesmo tempo em que também são criadas novas vontades e necessidades, como incentivos ao consumo etc.
A análise de David Harvey, geógrafo marxista britânico, para quem “O espaço e tempo são categorias básicas da existência humana” (HARVEY, 1989, p. 187), e estas “... são criadas necessariamente através de práticas e processos materiais que servem à reprodução da vida social” (HARVEY, 1989, p. 189), nos indica que essa nova estruturação social vem mudando o modo como os indivíduos que nela se encontram, reavaliem de outra forma a questão de tempo-espaço, construindo sua ação de acordo a esta nova realidade.
O modelo de organização trabalhista estruturado pelo capitalismo pós-guerra, modelo este inaugurado pelo empresário Henry Ford na década de 1910, que atingiu seu apogeu no período iniciado após a Segunda Guerra Mundial e que se estendeu até a década de 1970, intitulado Fordismo, tinha a clara percepção que o consumo de massa só adviria da produção em massa. Esse sistema de produção “[...] que se apoiava tanto na familiarização do trabalhador com longas horas de trabalho puramente rotinizado, exigindo pouco das habilidades manuais tradicionais e concedendo um controle quase inexistente do trabalhador sobre o projeto, o ritmo e a organização do processo produtivo.” (HARVEY, 1989), entrou em declínio.
Aquela sociedade industrial necessitava de um modelo de trabalhador dotado de autocontrole, de pouco pensamento crítico e capaz de desenvolver sua função sobre rotinas preestabelecidas de trabalho.  Influenciado pela ética protestante, que muito superficialmente se caracteriza como modo do indivíduo mostrar seu valor a Deus pelo trabalho, adiando os prazeres imediatos pensando e visando, uma recompensa maior no futuro; este trabalhador respondia às necessidades do capitalismo, ainda que para isso comprometesse sua vida e saúde.  “A seriedade da velha ética de trabalho impunha pesados fardos ao eu trabalhador: As pessoas tentavam provar seu próprio valor pelo trabalho” (SENNET, 1998, p.118). Mas neste modelo de trabalho, ainda que segmentado, era possível àquele que o executa ver o produto final para qual sua parte contribui. Por outro lado, em um ambiente onde centenas ou milhares de trabalhadores se reúnem é possível também estabelecer laços de identidade e de organização.
 Esse modelo vigente durante boa parte do sec. XX entrou em declínio fazendo com que o trabalhador, principalmente o trabalhador industrial que o movimentava, ficasse sem saber o seu lugar no mundo.  No novo modelo a individualização dos trabalhadores, gerou o enfraquecimento da organização coletiva e relegou ao abandono os segmentos mais frágeis da força de trabalho. Como as máquinas que o serviam, o trabalhador fordista tornou-se obsoleto e, como realizavam tarefas altamente rotinizadas sem agregar valor intelectual, o emprego de boa parte da classe foi substituído por máquinas automatizadas que, usadas a favor da classe dominante, reduziu aquele trabalhador à simples tarefa de ligar e desligar a máquina, vigiar o seu processo produtivo e etc.

“Desde que uma atividade seja feita do mesmo jeito muitas vezes, não é difícil criar um autômato, robô, para nos substituir nessa atividade, e nós passamos a ser, meramente, as pessoas que põem em ação o robô e o aparelho, e assim por diante, e o desligam depois de terminada tarefa.” (SINGER, 1999, p. 58).

Logo, as mudanças nas relações de trabalho são iminentes, partindo da nova estruturação do mundo moderno e aceleradas por diversos fatores - principalmente após a crise capitalista de 1973 e a queda do socialismo em 1989, fatos que trouxeram transformações radicais em todo o mundo. Dentro da lógica do neoliberalismo, com esse novo tipo de modelo trabalhista, as classes dominantes se aproveitaram para aumentar os seus lucros com a alegação de que a tarefa do trabalhador era mínima. Obviamente que os salários para quem executa essa função foram altamente reduzidos, os sindicatos trabalhistas enfraquecidos, e o trabalhador indignado com as mudanças em seus meios.
Essa chegada da automação, retirando a segurança social característica do Fordismo, alterou toda a organização social existente até então. Aquele trabalhador dotado de ética protestante, que via identificação e segurança no seu trabalho “perdeu seu chão” e assim, todas as relações sociais de trabalho sofreram alterações tornando-as altamente flexíveis, impessoais, dotadas de uma nova ética e etc.
“A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do Fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças  dos padrões do desenvolvimento desigual[...]” (HARVEY, 1989, p. 140).

 Aos seres humanos insatisfeitos, mas sem meios para alterar esse tipo de desenvolvimento cruel para o trabalhador e altamente produtivo para as classes dominantes, surgiram, às suas disposições, entre outras coisas, os novos empregos criados pelo novo sistema de consumo. O setor de serviços cresceu notavelmente ocasionando uma corrida cada vez maior pelo conhecimento dirigido para determinadas novas tarefas em ascensão, procuradas para a satisfação e realização profissional no presente e não mais no futuro como o trabalhador fordista acreditava. Assim, até os dias atuais, os novos trabalhadores buscam conhecimento especializado para as áreas de valorização, visando um bom emprego, que por conta do seu conhecimento, muito dificilmente será automatizado.
É a sociedade do conhecimento que começa a prevalecer, já que neste contexto a acumulação da riqueza, assim como a conquista e manutenção do poder, já não depende tanto de quem possui as terras e as máquinas, mas daqueles indivíduos ou sociedades que detém a capacidade tecnológica, cujo principal elemento é a tecnologia da informação – em destaque temos a possibilidade de formação de redes.
“As novas tecnologias da informação desempenharam papel decisivo ao facilitarem o surgimento desse capitalismo flexível e rejuvenescido, proporcionando ferramentas para a formação de redes, comunicação à distância, armazenamento/processamento de informação, individualização coordenada do trabalho e concentração e descentralização simultâneas do processo decisório.” (CASTELLS, 1999, p.412)
Uma realidade dessa presente forma de ver o trabalho é explicada pelo novo conceito da hiperespecialização, processo que seria inimaginável em qualquer modelo de produção anterior. Empresas intermediárias especializadas, como a Top-Coder, contratada para um projeto de TI, toma este projeto, o divide em pedaços e os oferece mundialmente a programadores freelancers como um desafio competitivo. Por exemplo, um projeto pode começar com um primeiro concurso para gerar uma nova idéia de software. Um segundo concurso poderia pedir uma descrição de alto nível dos objetivos do projeto vencedor e desafiar os especialistas a criar um documento que melhor traduziria estes objetivos em um detalhado sistema de requerimentos necessários. Este vencedor, o documento com as especificações, é a base para um novo concurso, no qual outros especialistas completam o desenho com a arquitetura do sistema, especificando as partes requeridas a este software e as conexões. Outros concursos são lançados para cada uma destas partes separadamente. Finalmente, outros programadores competirão para integrá-las e depois outros para encontrar e corrigir vírus nas diversas partes do sistema. Podem chegar a 300mil especialistas trabalhando em mais de 200 países, super rápido, pois cada um só se dedica àquilo que conhece bem e a um custo que pode ser apenas 25% em relação ao método tradicional, já que a empresa só paga ao vencedor de cada etapa.
Este processo já está ocorrendo não somente nos níveis que exigem altíssima tecnologia, como o exemplo do software ou empresas de pesquisa farmacêutica; mas também nos níveis mais baixos ou intermediários como a tradução de um livro, e em qualquer situação representa uma economia enorme para as empresas que o utilizam. Segundo os autores de um artigo publicado na revista “Harvard Business Review”, a hiperespecialização é inevitável devido à qualidade, rapidez e vantagens no custo que oferece aos empregadores – e ao poder que dá a indivíduos de dedicarem horas flexíveis a tarefas de sua livre escolha. A hiperespecialização é somente uma das latentes realidades encontradas nas relações contemporâneas, que é altamente lucrativa para as empresas que só pagam um ganhador, e que destrói a relação de ética, fazendo com que esse novo trabalhador se comporte de forma individualista reforçando os princípios da competitividade e do egoísmo. Como os subalternos desta nova ordem econômica podem organizar-se em uma força contrária, conscientes dos avanços e novas demandas da sociedade globalizada? Um desafio vital, social e intelectualmente falando, é como fomentar uma nova maneira de pensar as sociedades e o mundo dos negócios globalizado, trazendo para esta equação as questões de responsabilidade social na reorganização dos mercados.
A partir dos anos 90, os grupos de trabalhadores passaram a ver nas associações autogestionárias e solidárias, e em cooperativas, um arranjo capaz de responder às suas necessidades. Buscavam promover a mobilização e a formação de lideranças para gerar trabalho e renda e possibilitar a transformação da realidade social excludente.  Enquanto o “capital” é investido em tecnologia e busca novas formas de exploração e novos aproveitamentos de matérias primas, o movimento da “economia solidária” (que pode ser ilustrado pelas cooperativas de trabalho, por exemplo) desenvolve meios de adentrar-se nas sociedades neo-liberalistas e também democratizar a tecnologia, já usada demasiadamente pelas empresas globais a seu favor. O “capital”, o “mercado”, ou como queira chamar, não exerce necessariamente um monopólio das técnicas que a cada dia se renovam, mas faz com que a distribuição da tecnologia seja mais um meio de produzir lucro: alto custo das inovações para a população e uma exclusividade inicial adquirida pelas empresas globais através do capital e que marginaliza os excluídos dos avanços oferecidos pelas ferramentas da Tecnologia da Informação e Comunicação (TICs). 
A tecnologia em si não se configura como vilã frente à lógica coletiva da economia solidária, pelo contrário, ela facilita o que seria uma produção de “subsistência” (ou melhor, ainda, de satisfação pessoal) dos seus integrantes, mas a falta de investimento na economia solidária impossibilita a aquisição de novas tecnologias (produzidas em grande parte para os meios de produção capitalistas), o que faz das “cooperativas” e “conglomerados solidários”, obsoletos em relação ao mercado neoliberal. A falta de investimento nas cooperativas provenientes da economia solidária é citada com destaque por Paul Singer:

“Está comprovado que cooperativas de espécies complementares podem formar conglomerados economicamente dinâmicos, capazes de competir com conglomerados capitalistas. Mas, as cooperativas carecem de capital. É o seu calcanhar-de-aquiles. Se o movimento operário, que partilha o poder estatal com o capital, quiser alavancar o financiamento público da economia solidária, a cara da formação social vai mudar. Um novo modo de produção pode se desenvolver, este capaz de competir com o modo de produção (capital).” (SINGER, 1998, Uma Utopia Militante: Repensando o Socialismo, p. 82).


Esta realidade também tende a se modificar, à medida que os trabalhadores se organizam e que a sociedade também demanda e cobra outro papel das universidades como espaços de pesquisa e ciência. Uma das boas iniciativas data de 1995, “[...] com a criação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares, pela COPPE-UFRJ, estabeleceu-se um marco na história do Cooperativismo Popular no Brasil, contribuindo para a difusão e o fortalecimento deste movimento no país.” (GUIMARÃES, G.). Hoje as ITCPs estão espalhadas pelo Brasil, com maior ou menor grau de penetração popular, oferecem cursos de informática e para o uso das diversas ferramentas da Internet, gestão solidária, programas que oferecem assistência legal, tecnológica, educação à distância; a idéia é promover a troca de informação, tecnologia e experiências entre incubadoras, cooperativas incubadas e demais interessadas. Todos os programas se baseiam em quatro eixos estruturais: cooperação, autogestão, atividade econômica e solidariedade.  
  Apesar destas dificuldades, existem projetos que estreitam os abismos tecnológicos entre o “mercado” e a “economia solidária”, ou mesmo tentam garantir uma democratização tecnológica para a população, como no caso do “Software Livre”.  O Software Livre é um projeto idealizado por Richard Stallman (programador do MIT, Instituto de Tecnologia de Massachussets, nos EUA), no qual se prioriza basicamente o livre acesso dos usuários de computadores a softwares bem como a utilização prevista nas quatro regras do “Software Livre”, sendo estas: liberdade de utilizar os programas para qualquer propósito; liberdade de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo para as suas necessidades (sendo que o acesso ao código-fonte é um pré-requisito para esta liberdade);  liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa beneficiar o próximo e, por fim, a liberdade de aperfeiçoar o programa, e liberar os seus aperfeiçoamentos, de modo que toda a comunidade se beneficie. Essa distribuição da tecnologia lógica (que são os softwares) influencia diretamente na democratização da tecnologia, abrindo espaço para uso daqueles que antes não possuíam capital para aquisição, ao passo que também instrui o uso consciente dos programas.
 O mundo se encontra na situação em que o computador, e a internet são peças chaves tanto economicamente quanto ideologicamente, e já existe o advento de um paradigma cada vez mais “automatizado” das formas de trabalho. Políticas de distribuição de tecnologia e conhecimentos técnicos, atreladas à lógica da economia solidária, preparam o terreno para as gerações que irão de encontro com os princípios políticos voltados a mera acumulação de capital, seja através do neoliberalismo, ou outro modelo, admitindo nome e “roupagem” diferentes.
Um dos problemas da sociedade capitalista contemporânea foi pensar a política, a sociedade e a economia em compartimentos separados. E a economia não raras vezes era compreendida como se fosse governada mecanisticamente por sua própria racionalidade, orientada pelo mercado, o que se acreditava fosse benéfico. Até mesmo a tecnologia, controlada pelo mercado, veio a agravar a cisão de um lado a classe dos ricos em informação, os alfabetizados digitais, os que podem “participar” e de outro, os sem-informação, os analfabetos digitais e os excluídos. Sem dúvida alguma o problema não está na tecnologia e na poupança de trabalho humano que ela implica, mas no monopólio da tecnologia nas mãos dos capitalistas favorecidos por governos e políticas neoliberais que os apóia, que tem se resumido à busca mais eficiente da obtenção do lucro, motor da lógica de acumulação.    
Nesta perspectiva os seres humanos, desprovidos do seu próprio capital humano e criativo e dos meios de produção, são submetidos pela violência ou pela falta de opção e transformados em mais uma ferramenta para o enriquecimento de poucos. O trabalho deixa de ser criação para ser apenas relação com o dono e o trabalhador é alienado de sua força de trabalho, de sua criatividade e do próprio produto que produziu. E, pelos processos mais recentes de atomização da divisão do trabalho, nem mesmo tem conhecimento do que será o produto final.
A economia solidária, as experiências de comércio justo, as cooperativas com todas as suas dificuldades vêm reiterar que há outros caminhos possíveis, e várias práticas têm demonstrado que a esta lógica do lucrar sem produzir pode ser contraposta uma outra baseada em valores cidadãos. Se houver vontade política e organização das forças populares, um sistema alternativo de economia social baseado na solidariedade humana pode ser, e tem sido introduzido. Contrapondo-se à “ideologia do Eu-sem-nós e à competição entre Eus individuais e coletivos.” (ARRUDA, 2009, p.49), um sistema que reconhece a importância do desenvolvimento tecnológico, mas que potencializa a nova tecnologia como motor de promoção de trabalho e prosperidade para todos. 













REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



ARRUDA, Marcos. Educação para uma Economia do amor – Idéias & Letras, Aparecida, SP, 2009.

CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3, São Paulo: Paz e terra, 1999, p. 411-439.

GUIMARÃES, G. Os ossos do ofício: cooperativas populares em cena aberta. Rio de Janeiro, Espalha Fato, 1998. Disponível para download em www.itcp.coppe.ufrj.br Acesso em 2 de dezembro de 2011.

HARVEY, David, A condição pós-moderna, São Paulo, 1989.

HECKERT, A. Aurélio. Economia Solidaria. Software Livre. Movido de Economia Solidaria. O Que É Software Livre. Disponível em: http://wiki.softwarelivre.org/EconomiaSolidaria/SoftwareLivre Acesso em 2 de dezembro de 2011.

SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.

SINGER, Paul. Uma Utopia Militante: Repensando o Socialismo, Brasil, 1998.

SINGER, Paul. A crise das relações de trabalho. In: CARVALHO NETO, A. M. NABUCO, M. R (orgs.) Relações de trabalho contemporâneas. IRT, PUC/Minas, 1999.

SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. 3º ed. SP: Contexto, 1999.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 4 ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1985.

Artigo The Age of Hyperspecialization – by Thomas W. Malone, Robert J. Laubacher and Tammy Johns. Harvard Business Review- July-August 2011).


Autores: Francini Ramos, Júlio Cézar Filho, Pablo Paiva, Paula Santos e Ramon Maia