terça-feira, 29 de novembro de 2011

SUBALTERNIDADE NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO - POR GISMAR JUNIOR


A inversão dos papéis, não inverte a condição.
“Salve Geral”




Introdução


O subalterno¹ é reproduzido o tempo todo no cinema brasileiro e não haveria de ser diferente, pois vivemos em uma sociedade contemporânea múltipla e que envolve posições de subalternidade. Posições essas, que são mantidas através de discursos hegemônicos, operado pela elite, pela televisão, ou através de discursos solidários pelo Brasil a fora. O cinema brasileiro é o espelho dessa sociedade. Esse ensaio consiste em analisar a questão da subalternidade no cinema brasileiro, que se mantém escondida aos olhos da maioria dos telespectadores. Tentarei mostrar a relação de poder que gira em torno desse assunto em um fato muito curioso que observei dentro do filme “Salve Geral” - (2009),  filme escolhido minha análise.

Nosso Cinema Contemporâneo

O filme é do diretor Sergio Rezende, cineasta brasileiro que já dirigiu vários filmes importantes como Lamarca e Guerra de Canudos. O cineasta opta por uma visão política dentro do contexto do filme, mostrando a precariedade do sistema carcerário, da segurança do estado, mostrando a corrupção da polícia, de advogados, de magistrados e frisando o poder que possui o crime organizado no Brasil. Apesar de ser baseado em fatos reais, o filme não deixa de ser um simulacro², cheio de glamour e recheado de sofisticação.  
Essa estética sofisticada, introduzida pelo diretor segue as mudanças que ocorreram na linha de representação cultural no cinema brasileiro no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, onde ocorre uma glamorização dos assuntos periféricos, uma glamorização do subalterno, como cita Angela Prysthon:

Poderíamos dizer que, por mais estranho que possa parecer, vem sendo sistematicamente instituído um cânone da periferia nas artes do país – uma espécie de espetacularização da subalternidade. Especialmente a partir da segunda metade dos anos 90, ficou patente a necessidade de inserção de várias periferias brasileiras no centro do debate cultural [...] (Angela  Prysthon - O subalterno na tela: Um novo cânone para o cinema brasileiro?)

 A partir desse período o conceito de subalterno foi trabalhado de outra forma, deixando de ser meramente o “subalterno habitual” (invisível, sem voz, sofrido, pobre, inofensivo, ligado a idéia de lugares subdesenvolvidos – como foi apresentado, por exemplo, na década de 60 no filme “Deus e o Diabo na terra do Sol” - de Glauber Rocha), passando a ocupar o lugar de “subalterno complexo” (ligado ao contexto urbano, a idéia de crime, de tráfico de drogas, possuidor de arma de fogo, ofensivo, visível – ao exemplo do filme de 2002, “Cidade de Deus” – de Fernando Meirelles). Essa mudança da apresentação do subalterno no cinema brasileiro acompanha a mudança histórica social brasileira. O Brasil dos anos 60 não é o Brasil de hoje.
 Assim como em “Cidade de Deus” no filme “Salve Geral” A idéia principal do autor não é meramente ilustrar a realidade, mas sim conceber um produto altamente mercadológico, de sucesso, voltado para o consumo da classe média.

Salve Geral
O Dia em que São Paulo parou.

 Baseado em fatos reais, o filme aborda os acontecimentos ocorridos no estado de São Paulo na noite de 12 de maio de 2006, onde a organização criminosa PCC - “Primeiro Comando da Capital”, inicia uma onda de ataques em toda cidade, contra as forças de segurança e a população civil.  O filme gira em torno da personagem principal, Lúcia - vivida pela atriz Andréia Beltrão - uma viúva de classe média, professora de piano, formada em direito, que passa por dificuldades financeiras. Ela tenta o tempo todo em retirar seu filho Rafael  da cadeia – vivido pelo ator Lee Thalor – um garoto de 18 anos, que acaba sendo preso por cometer um assassinato. Durante a trama do filme, Lúcia tendo seu filho preso, acaba fazendo freqüentes visitas à penitenciária onde conhece Rúiva (Denise Weinberg), que também é advogada, porém, advogada do PCC. As duas iniciam uma amizade e como Lúcia passa por dificuldades financeiras acaba aceitando a proposta de se sujeitar a várias missões ligadas à organização criminosa, chegando até a se envolver sexualmente com um dos lideres da facção, o Professor - vivido na pele do ator Bruno Perillo, que é um dos principais chefões do PCC juntamente com os personagens Chico e Pedrão - sendo esse último considerado o líder majoritário – representados pelos autores Eucir de Souza e Guilherme Sant'anna.  
Enquanto isso, uma luta interna pelo poder do “Partido” - que é uma denominação da organização criminosa – ocorre por divergências entre os pensamentos dos chefões. Essa luta é ampliada pelo confronto dos presos com o sistema carcerário. Os ataques têm inicio quando o governo decide transferir de uma só vez centenas de presos para uma prisão de segurança máxima no interior do estado incluindo os chefões. Inicia-se assim, em pleno dia das mães, sob as ordens do Primeiro Comando da Capital, uma das maiores demonstrações de poder, terror e violência nunca antes vista no estado de São Paulo.
 O subalterno complexo é o tipo de subalterno que está presente em todo o contexto do filme “Salve Geral”. Podemos notar essa complexidade, por exemplo, na personagem “Rúiva”, que por um lado, sendo advogada bem sucedida, tem o reconhecimento e o poder de fala perante a sociedade, mas também ocupa o lugar de subalternidade perante Partido, pois está sujeita aos comandos do mesmo e podendo ser morta pela organização a qualquer momento, mesmo os servindo. O mesmo se aplica à personagem principal “Lúcia” que ao trabalhar para “O Partido” assume a posição de subalterna complexa. Complexa, porque assim como “Rúiva” ela tem livre acesso aos presídios, poder de fala, reconhecimento social por também ser advogada. Já o personagem “Rafael” logo que é preso, entra numa condição de subalternidade, porém, assim como a maioria dos presos, “Rafael” a priori, assume a condição de subalterno habitual, pois não possui nenhum poder de voz dentro do presídio, ficando sob as ordens dos presidiários mais antigos, entretanto, quando se envolve internamente com Partido passa também a ser considerado um subalterno complexo. Para minha análise, tomarei como foco um momento específico do filme, e não somente um personagem. É o momento em que o Estado se encontra incapacitado perante os fatos, que a meu ver é um fato muito curioso.

A inversão dos papéis

Para maior entendimento sobre a questão que quero colocar é necessário primeiro a compreensão de que a subalternidade é uma condição social, porém não é dura, estática, não somos subalternos oficialmente. Podemos dizer também, que a subalternidade é uma condição relacionária, pois pressupõem sempre uma relação cujos significados só são colocados a partir de determinadas circunstancias, ou seja, é uma relação de poder com o outro, ao exemplo da relação “professor e aluno” - o professor em sala de aula, ocupa uma posição de “superioridade” tendo assim seus alunos como uma espécie de “subalternos” a essa condição, entretanto, essa posição muda ao saírem da sala, pois a relação exercida fora desse ambiente, não é mais uma relação de superioridade – basta mudar a circunstância para que mude essa relação de poder.
No Brasil essa relação está ligada totalmente a questão da classe social. Essa relação entre classe media (elite) e classe “popular” (classe trabalhadora) é uma relação de poder, mas não apenas da primeira sobre a segunda, como também o inverso, pois o poder é móvel. Analisemos dessa forma: Coloque o “Estado” como representação da classe média e os chefões do PCC como representação da classe popular. No contexto do filme o Estado é representado pela polícia, que se vê sem alternativa alguma para controlar as rebeliões que acontecem simultaneamente em vários presídios e muito menos controlar os ataques que tomam conta da grande São Paulo, resolvendo ceder a uma negociação com os chefões do PCC - O Partido - que por sua vez, foram os autores do caos que ocorria no momento. Agora tomemos como base, a citação de SPIVAK que diz :   

 [...] representação estão correndo juntos: representação
como “falar por”, como na política e representação como
“re-presentar” como na arte ou filosofia. Uma vez que a
teoria também é apenas ação, o teórico não representa o
(falar por) dos grupos oprimidos. [… ] Este dois sentidos
de representação dentro do estado de formação e da lei,
por um lado, e a predição do sujeito, por outro lado, estão
relacionados, mas irredutivelmente descontínuas.
(SPIVAK. Can the subaltern speak? p.275)


Para ela, “o subalterno necessita de um representante por sua própria condição de silenciado”. Sendo assim, nesse específico contexto do filme em que o Estado não tem poder algum de cessar os fatos que ali ocorriam, podemos dizer que ele, assume automaticamente a condição de subalterno, perante os representantes do PCC, pois, já não pode mais falar, reagir, assumir o controle. Nesse momento o Estado precisa de alguém para falar por ele, ser representado, seu poder de voz some diante dos fatos e a única alternativa que tem é ceder aos chefões do crime organizado. Podemos notar aqui a mobilidade do poder entre os subalternos e o Estado. A inversão dos papéis.

Conclusão
Se houve a inversão dos papeis onde o Estado passa a ocupar o lugar de subalterno, será que os subalternos passam a ocupar o lugar do Estado? A resposta é NÃO. Os membros do PCC, mesmo num ato de extrema ousadia, deslocando a relação de poder, não oferecem uma contra hegemonia perante o Estado. Apesar de serem “organizados” entre si, não há organização social, ou um reconhecimento da sociedade perante essa organização. Sendo assim, os membros do PCC não deixam a condição de subalternos, apenas reafirmam suas posições de subalternos complexos.
Perante as raízes deixadas no Brasil desde o período colonial, sendo essas, reproduzidas e reforçadas a cada dia através da mídia e discursos hegemônicos produzidos pela elite, sair da condição de subalternidade, a meu ver, é uma utopia que esta muito longe de ser alcançada.

domingo, 27 de novembro de 2011

A CONTRAÇÃO DO TEMPO E DO ESPAÇO DO ESPETÁCULO - PALESTRA COM MARILENA CHAUÍ




Segue abaixo os escritos sobre a palestra da Marilena Chauí ao CPFL Cultura realizada em 2010.






A Contração do tempo e do espaço do espetáculo – Marilena Chauí

“A primeira reflexão é realizada pelo próprio corpo. A consciência aprende com o corpo a refletir”.
A relação corpo a corpo nos possibilita ser espacial e temporal. O mundo virtual não tem a referência do espaço e do tempo como o centro da nossa experiência. Não é mais essa experiência é outra experiência. O que se passa quando a espacialidade e a temporalidade do nosso corpo e da nossa experiência se perdem na atopia, ou seja, na ausência de lugar e ausência de espaço e na acronia, na ausência do tempo. São duas ausências, a atopia e a acronia, que caracterizam o mundo virtual.
Após a revolução industrial o corpo humano se expandiu por causa do telescópio, do telegrafo, da maquina a vapor, do telefone, do radio, da televisão etc. Agora com os satélites e a informática, o nosso cérebro se expande diminuindo distancias espaciais e intervalos temporais até abolir o espaço e o tempo. De fato o universo está online durante vinte e quatro horas, sem obstáculos de distância e de diferenças geográficas, diferenças sociais, diferenças políticas, nem com a distinção entre o dia e a noite, ontem e amanhã. Tudo se passa aqui e agora. Como se vê nas salas de bate papo em que é possível conversar com pessoas do outro extremo do planeta e cuja presença é instantânea. Ou como se vê nas grandes operações financeiras feitas em um piscar de olhos entre empresas e bancos, situados nos confins da terra.
Com a revolução da informática estamos diante de uma nova inserção do saber e da tecnologia no modo de produção capitalista. Nas revoluções técnicas e tecnológicas anteriores, a pesquisa científica teórica era autônoma e se tornava ciência aplicada quando empregada por meio de tecnologias vinculadas à produção econômica, ou quando os resultados teóricos eram retomados com fins econômicos em laboratórios mantidos por empresas de produção. Hoje a ciência tornou-se força produtiva. Ela deixou de ser uma força de conhecimento autônoma e de ser suporte para o capital, para se converter no principal agente de sua acumulação e reprodução. Fala-se, por exemplo, em capital intelectual das empresas.
 Consequentemente a força e o poder capitalista encontram-se hoje no monopólio dos conhecimentos e da informação. E é isso que dá origem a expressão: sociedade do conhecimento. Com essa expressão, pretende-se indicar que a sociedade e a economia contemporânea se fundam sobre a ciência e a informação graças ao uso competitivo do conhecimento, da inovação tecnológica e da informação nos processos produtivos e financeiros, bem como os serviços como a educação, a saúde e o lazer. Toda questão que se coloca é a de saber quem tem a gestão de toda essa massa da informação, quem tem o controle coletor e distribuidor dessa gigantesca massa de informação e, portanto, a pergunta é: Quem tem o poder?
David Harvey, em um livro chamado “A Condição Pós-Moderna”, aponta como conseqüência da nova forma assumida pelo capitalismo, a chamada globalização, uma transformação, sem precedentes na nossa experiência, do espaço e do tempo que é designada por ele como a compressão do espaço temporal. Harvey faz uma distinção entre a forma que tinha a organização da produção econômica até o momento em que se inicia a chamada globalização e o que acontece com ela na globalização. No período que antecede a globalização o que predomina é a organização fordista do trabalho. Identificamos o Fordismo com a idéia de linha de montagem de produção, mas ele é mais do que isso. Ele é a economia na qual uma empresa detém e controla a produção desde a ponta inicial, que é a matéria prima, até a ponta final, que é a distribuição e consumo do produto. Uma única empresa controla todas as etapas. Para fazer isso de forma racional, ou seja, para gerar lucro, as empresas tendiam a se concentrar em uma única planta. Uma coisa que era típica na produção Fordista era um empenho na qualidade final do produto. Um produto era consagrado no mercado, mantido na tradição do mercado e do consumo, expandido, graças a sua qualidade. O primeiro elemento de qualidade para as empresas desta época era a durabilidade. As empresas estavam ligadas a idéia de fazer estoque. Elas tinham estoque porque os produtos de boa qualidade eram duráveis e você tinha o estoque para atender à demanda crescente que se faria em torno do produto.
Na era da globalização temos o fim da grande planta industrial. A produção está inteiramente fragmentada. Um dos efeitos sociais deste novo processo foi a fragmentação da classe trabalhadora que tinha o local de trabalho como lugar onde ela se organizava, onde ela criava os seus referenciais de identidade e de luta. Era o modo pelo qual ela se organizava em associações e sindicatos. Quando isto se esfacela, a classe trabalhadora não tem mais referencial e precisa inventar, criar e produzir referenciais para ela como classe. Porque o que surge agora é um conjunto fragmentado de indivíduos operando isoladamente uns dos outros e não é por acaso que, nesta nova forma, ressurge aquilo que existiu no início do capitalismo e que depois desapareceu: a empresa familiar. Temos assim o fenômeno de fragmentação econômica e da dispersão sociopolítica. Todo este processo é negado e ocultado pelo movimento oposto que é o movimento que vai produzir uma unificação sem precedentes. É essa unificação que o Harvey vai chamar de “compressão espaço temporal”. Com o avanço tecnológico eletrônico e de informação há a compressão do espaço onde tudo se passa aqui, sem distância, diferença, nem fronteira e a compressão do tempo onde tudo se passa agora sem passado e sem futuro. Assim a produção no processo de globalização abandonou evidentemente a idéia de qualidade, abandonou ainda mais veementemente a idéia de estocagem e opera com o descartável. Tudo é descartável. Volátil e efêmera hoje a nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota em um presente reduzido há um instante fugaz. Nada exemplifica melhor essa fugacidade do tempo e a sua redução há um instante, sem passado e sem futuro, do que o Twiter. Vivemos sobre o signo da tele-presença e da tele-observação em que tudo parece nos ser imediatamente dado sob a forma da transparência das imagens apresentadas como evidências.
Se compararmos as análises de Maurice Merleau-Ponty sobre o nosso corpo a situação contemporânea de atopia e acronia, podemos dizer que há um mundo novo, um mundo virtual desprovido de espessura temporal e espacial. Um mundo no qual o nosso corpo e reduz: de um lado à percepção visual de imagens planas e fugazes e de outro à atividade mecânica de controle de operações e sinais propostos pelos autômatos. Um mundo sem lugares, distâncias, profundidades, qualidades - O mundo da atopia. Um mundo sem tempo no qual nada passa e nada fica, pois tudo coexiste sem passado num presente interminável - O mundo da acronia. Então o que significa virtual? Para compreendermos este conceito vale à pena mencionar outro conceito com o qual ele tende a ser indevidamente confundido, o conceito de possível. O modo de relação entre o possível e o real, e entre o virtual e o real também não é o mesmo. Na tradição filosófica o possível é aquilo que pode vir a existir se houver um agente ou circunstancias que o façam passar a existência. O real é o que existe efetivamente. O possível é o que pode vir a existir. Também na tradição filosófica tendia-se a identificar o possível e o virtual. A semente é a árvore virtual. Ou a árvore possível. Isto é, considerava que o possível e o virtual eram simplesmente potencialidades latentes que poderiam vir à existência se houvesse um agente ou condições favoráveis ao acontecimento. Na perspectiva da tradição, uma expressão como realidade virtual é um não senso, pois o virtual, para a tradição, é irreal. É um mero possível e ainda inexistente, algo irreal. A revolução da informática e a cibernética modificaram o conceito de virtual. O virtual já é real e já existe. Ele não se opõe ao real, ele se opõe ao atual. Agora se entende por virtual algo real e existente que aguarda uma atualização. É aquilo que pode ser infinitamente atualizado. O virtual é o que não pode ser determinado por coordenadas espaciais ou temporais porque ele existe sem estar presente em um espaço ou tempo determinados. Ou seja, para o virtual a atopia e a acronia são o seu modo de ser. É o seu modo de existir. A atualização é o modo de relação dos indivíduos humanos como sistemas informacionais.
Nós mencionamos assim uma diferença entre a forma fordista da organização do trabalho para a relação do capital e a nova forma assumida pela economia com a globalização. O que é virtualizar uma empresa capitalista? Em um modo empresarial clássico, uma empresa reunia seus empregados em um mesmo edifício. O emprego do tempo dos funcionários era especificado por suas horas (horários de trabalho). Uma empresa virtual, em contrapartida, faz o uso maciço do tele-trabalho e tende a substituir a presença física dos empregados nos locais pela participação em uma rede de comunicação eletrônica e, o uso de recursos computacionais, favorecendo a cooperação. O centro de gravidade da organização não é mais um conjunto de postos de trabalho e de empregos do tempo, mas sim um processo de coordenação que redistribui as coordenadas, espaço temporais, do coletivo de trabalho e de cada um dos seus membros em função das diferentes exigências da empresa. Isto é a fragmentação total onde ninguém precisa encontrar ninguém, bastando apenas uma relação mediada pela “tele tele”. Com o virtual surge algo denominado cibercultura que se encontra ligada ao virtual de duas maneiras: de forma direta ou de forma indireta. Diretamente, a digitalização da informação pode ser aproximada da virtualização. Os códigos dos computadores inscritos nos discos “invisíveis” facilmente copiáveis ou transferíveis de um nó para outro da rede, são quase virtuais visto que são quase independentes de coordenadas, espaço temporais determináveis. No centro das redes digitais a informação situada em algum lugar, isto é, em um determinado suporte. Mas ele está também virtualmente presente em cada ponto da rede onde ela seja pedida. O mundo virtual considerado como um conjunto de códigos digitais é um potencial de imagens, enquanto uma determinada cena durante uma imersão no mundo virtual atualiza este potencial em um contexto particular de uso. Indiretamente a digitalização e a virtualização se relacionam porque as redes digitais e interativas, no seu desenvolvimento, favorecem outros movimentos de virtualização que não o da informação propriamente dita. Assim, a comunicação contínua como digital, o movimento de virtualização iniciado há muito tempo com técnicas antigas como a escrita, a gravação de som e imagem, o radio, a televisão e o telefone.
O ciberespaço encoraja um estilo de relacionamento quase independente dos lugares geográficos: telecomunicação, telepresença e das coincidências dos tempos. A extensão do ciberespaço acompanha e acelera uma virtualização geral da economia e da sociedade, os supostos de inteligência coletiva do ciberespaço multiplicam e colocam em sinergia competências. Do designe à estratégia, os cenários são alimentados pelas simulações e pelos dados que são colocados à disposição pelo universo digital. O ciberespaço julga alguns, é o vetor de um universo aberto, ou seja, a deputação de um espaço universal – isto é o não espaço. Muitos dos idealizadores e defensores do ciberespaço se referem a ele significativamente como espaço desincorporado e espiritual. Possibilidades, segundo alguns, de que nós possamos nos transformar em seres de pura luz, livres da brutalidade e do caos próprios dos nossos corpos, livres do espaço, livres do tempo. Novos anjos de um novo paraíso terrestre no qual evidentemente não haverá morte porque podemos fazer o download das nossas mentes para os computadores e transcendendo a materialidade, o espaço e o tempo, viver eternamente no espaço digital. Ora, como se percebe, nós estamos de volta ao nosso ponto de partida: de volta ao clássico problema filosófico da relação entre o corpo e a alma, a matéria e o espírito, o mundo e o pensamento.
É Interessante observar a oposição entre duas atitudes predominantes no mundo contemporâneo. De fato, enquanto a cultura do ciberespaço propõe a desmaterialização do homem, a sua transformação em um ser de pura luz sem espaço e sem tempo, por sua vez a genética, a bioquímica e a neurobiologia, tomam a direção oposta, pois propõe a pura materialidade do espírito, a indistinção entre cérebro e alma, cérebro e consciência. Estas duas atitudes estão presentes quando usamos expressões como inteligência artificial, armas inteligentes, tecidos inteligentes, remédios inteligentes, edifícios inteligentes etc., sem que nos demos conta de que significa usarmos a palavra “inteligência” para objetos técnicos. Ou seja, nós passamos a considerá-los como coisas habitadas por consciências ou almas, caímos numa concepção animista. Mas em contrapartida, do lado do ciberespaço nós nos tornamos puras almas angélicas sem corpo enquanto do lado da ciência nós nos tornamos puros corpos sem alma. Essas questões são discutidas e problematizadas em dois filmes: Matrix e Avatar.

Qual o impacto dessa desmaterialização nas relações sociais?

Sempre soube que desde o Weber que a ética protestante foi inseparável do capitalismo porque ela trouxe aquilo que era indispensável para a exploração do trabalho – a idéia de que o trabalho é a virtude suprema e a preguiça o pecado mortal. E para conseguir que todas as energias dos indivíduos e toda energia dos trabalhadores fosse exclusivamente dirigida para o trabalho, se teve a repressão sexual elevada a um nível poucas vezes conhecido na história. Não é por acaso que no período da moral Vitoriana que se detém também o nascimento da psicanálise, porque opera com a repressão do desejo como condição do exercício do trabalho. Todo mundo diz que nós mudamos de registro porque a nossa sociedade não é mais a sociedade do trabalho de massa e sim a sociedade do consumo em massa. E que para haver o sucesso do consumo em massa é preciso desreprimir o desejo, dar asas soltas ao desejo e, sobretudo, dar asas soltas à busca do prazer. Nós sabemos que qualquer liberação feita sob o modo de produção capitalista não libera coisa alguma. Então o que é esta suposta liberação do desejo? Este suposto direito ao prazer? É na verdade a maneira pela qual você passa a controlar o próprio desejo não mais através da ética do trabalho, mas através da ética do consumo. Tudo está ligado, portanto à idéia do indivíduo de sucesso, do indivíduo competitivo, do sucesso a qualquer preço, eternamente jovem, eternamente belo. Conduz as mulheres à bulimia e à anorexia das modelos, os homens ao desejo pelos automóveis, todo este emaranhado que é vendido como desejo liberal. Então retém uma nova forma de repressão do desejo pelo controle dele e pela determinação de quais são os objetos válidos de desejo. O resultado desse processo é muito pior do que o anterior porque no processo anterior havia um esforço enorme de passar dessa repressão a uma simbolização. Esse processo de simbolização nós não vemos mais em nossa sociedade contemporânea porque tudo que pertencia ao universo simbólico caiu para a dimensão do signo, virou espetáculo e como signo é aquilo que você aponta e daquilo de que você se apropria. E como não tem mediação simbólica, o que tem é uma luta mortal pelo acesso desses sinais: sucesso, juventude, poder, riqueza etc. E tudo isso gera uma violência, uma competição absolutamente colossal. Quando nós passamos para essa acronia, atopia e para a desmontagem do nosso corpo como ser sensível e como ser simbólico e assim nos reduzimos a sinais virtuais fora do espaço e do tempo, eu acabo sem saber o que sobrou dos seres humanos. Enfim, qual é o novo ser humano que está surgindo? Porque aquele que existia acabou. Como será o que virá? Ele vai nascer em um campo sem simbolização, só de sinalização, sem espaço, sem tempo e sem corpo, tudo virtual.   


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAUÍ, Marilena. A contração do tempo e do espaço do espetáculo. 2010. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=X5d1TBpXrq0
Acesso em 26 de Nov. de 2011