domingo, 27 de novembro de 2011

A CONTRAÇÃO DO TEMPO E DO ESPAÇO DO ESPETÁCULO - PALESTRA COM MARILENA CHAUÍ




Segue abaixo os escritos sobre a palestra da Marilena Chauí ao CPFL Cultura realizada em 2010.






A Contração do tempo e do espaço do espetáculo – Marilena Chauí

“A primeira reflexão é realizada pelo próprio corpo. A consciência aprende com o corpo a refletir”.
A relação corpo a corpo nos possibilita ser espacial e temporal. O mundo virtual não tem a referência do espaço e do tempo como o centro da nossa experiência. Não é mais essa experiência é outra experiência. O que se passa quando a espacialidade e a temporalidade do nosso corpo e da nossa experiência se perdem na atopia, ou seja, na ausência de lugar e ausência de espaço e na acronia, na ausência do tempo. São duas ausências, a atopia e a acronia, que caracterizam o mundo virtual.
Após a revolução industrial o corpo humano se expandiu por causa do telescópio, do telegrafo, da maquina a vapor, do telefone, do radio, da televisão etc. Agora com os satélites e a informática, o nosso cérebro se expande diminuindo distancias espaciais e intervalos temporais até abolir o espaço e o tempo. De fato o universo está online durante vinte e quatro horas, sem obstáculos de distância e de diferenças geográficas, diferenças sociais, diferenças políticas, nem com a distinção entre o dia e a noite, ontem e amanhã. Tudo se passa aqui e agora. Como se vê nas salas de bate papo em que é possível conversar com pessoas do outro extremo do planeta e cuja presença é instantânea. Ou como se vê nas grandes operações financeiras feitas em um piscar de olhos entre empresas e bancos, situados nos confins da terra.
Com a revolução da informática estamos diante de uma nova inserção do saber e da tecnologia no modo de produção capitalista. Nas revoluções técnicas e tecnológicas anteriores, a pesquisa científica teórica era autônoma e se tornava ciência aplicada quando empregada por meio de tecnologias vinculadas à produção econômica, ou quando os resultados teóricos eram retomados com fins econômicos em laboratórios mantidos por empresas de produção. Hoje a ciência tornou-se força produtiva. Ela deixou de ser uma força de conhecimento autônoma e de ser suporte para o capital, para se converter no principal agente de sua acumulação e reprodução. Fala-se, por exemplo, em capital intelectual das empresas.
 Consequentemente a força e o poder capitalista encontram-se hoje no monopólio dos conhecimentos e da informação. E é isso que dá origem a expressão: sociedade do conhecimento. Com essa expressão, pretende-se indicar que a sociedade e a economia contemporânea se fundam sobre a ciência e a informação graças ao uso competitivo do conhecimento, da inovação tecnológica e da informação nos processos produtivos e financeiros, bem como os serviços como a educação, a saúde e o lazer. Toda questão que se coloca é a de saber quem tem a gestão de toda essa massa da informação, quem tem o controle coletor e distribuidor dessa gigantesca massa de informação e, portanto, a pergunta é: Quem tem o poder?
David Harvey, em um livro chamado “A Condição Pós-Moderna”, aponta como conseqüência da nova forma assumida pelo capitalismo, a chamada globalização, uma transformação, sem precedentes na nossa experiência, do espaço e do tempo que é designada por ele como a compressão do espaço temporal. Harvey faz uma distinção entre a forma que tinha a organização da produção econômica até o momento em que se inicia a chamada globalização e o que acontece com ela na globalização. No período que antecede a globalização o que predomina é a organização fordista do trabalho. Identificamos o Fordismo com a idéia de linha de montagem de produção, mas ele é mais do que isso. Ele é a economia na qual uma empresa detém e controla a produção desde a ponta inicial, que é a matéria prima, até a ponta final, que é a distribuição e consumo do produto. Uma única empresa controla todas as etapas. Para fazer isso de forma racional, ou seja, para gerar lucro, as empresas tendiam a se concentrar em uma única planta. Uma coisa que era típica na produção Fordista era um empenho na qualidade final do produto. Um produto era consagrado no mercado, mantido na tradição do mercado e do consumo, expandido, graças a sua qualidade. O primeiro elemento de qualidade para as empresas desta época era a durabilidade. As empresas estavam ligadas a idéia de fazer estoque. Elas tinham estoque porque os produtos de boa qualidade eram duráveis e você tinha o estoque para atender à demanda crescente que se faria em torno do produto.
Na era da globalização temos o fim da grande planta industrial. A produção está inteiramente fragmentada. Um dos efeitos sociais deste novo processo foi a fragmentação da classe trabalhadora que tinha o local de trabalho como lugar onde ela se organizava, onde ela criava os seus referenciais de identidade e de luta. Era o modo pelo qual ela se organizava em associações e sindicatos. Quando isto se esfacela, a classe trabalhadora não tem mais referencial e precisa inventar, criar e produzir referenciais para ela como classe. Porque o que surge agora é um conjunto fragmentado de indivíduos operando isoladamente uns dos outros e não é por acaso que, nesta nova forma, ressurge aquilo que existiu no início do capitalismo e que depois desapareceu: a empresa familiar. Temos assim o fenômeno de fragmentação econômica e da dispersão sociopolítica. Todo este processo é negado e ocultado pelo movimento oposto que é o movimento que vai produzir uma unificação sem precedentes. É essa unificação que o Harvey vai chamar de “compressão espaço temporal”. Com o avanço tecnológico eletrônico e de informação há a compressão do espaço onde tudo se passa aqui, sem distância, diferença, nem fronteira e a compressão do tempo onde tudo se passa agora sem passado e sem futuro. Assim a produção no processo de globalização abandonou evidentemente a idéia de qualidade, abandonou ainda mais veementemente a idéia de estocagem e opera com o descartável. Tudo é descartável. Volátil e efêmera hoje a nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota em um presente reduzido há um instante fugaz. Nada exemplifica melhor essa fugacidade do tempo e a sua redução há um instante, sem passado e sem futuro, do que o Twiter. Vivemos sobre o signo da tele-presença e da tele-observação em que tudo parece nos ser imediatamente dado sob a forma da transparência das imagens apresentadas como evidências.
Se compararmos as análises de Maurice Merleau-Ponty sobre o nosso corpo a situação contemporânea de atopia e acronia, podemos dizer que há um mundo novo, um mundo virtual desprovido de espessura temporal e espacial. Um mundo no qual o nosso corpo e reduz: de um lado à percepção visual de imagens planas e fugazes e de outro à atividade mecânica de controle de operações e sinais propostos pelos autômatos. Um mundo sem lugares, distâncias, profundidades, qualidades - O mundo da atopia. Um mundo sem tempo no qual nada passa e nada fica, pois tudo coexiste sem passado num presente interminável - O mundo da acronia. Então o que significa virtual? Para compreendermos este conceito vale à pena mencionar outro conceito com o qual ele tende a ser indevidamente confundido, o conceito de possível. O modo de relação entre o possível e o real, e entre o virtual e o real também não é o mesmo. Na tradição filosófica o possível é aquilo que pode vir a existir se houver um agente ou circunstancias que o façam passar a existência. O real é o que existe efetivamente. O possível é o que pode vir a existir. Também na tradição filosófica tendia-se a identificar o possível e o virtual. A semente é a árvore virtual. Ou a árvore possível. Isto é, considerava que o possível e o virtual eram simplesmente potencialidades latentes que poderiam vir à existência se houvesse um agente ou condições favoráveis ao acontecimento. Na perspectiva da tradição, uma expressão como realidade virtual é um não senso, pois o virtual, para a tradição, é irreal. É um mero possível e ainda inexistente, algo irreal. A revolução da informática e a cibernética modificaram o conceito de virtual. O virtual já é real e já existe. Ele não se opõe ao real, ele se opõe ao atual. Agora se entende por virtual algo real e existente que aguarda uma atualização. É aquilo que pode ser infinitamente atualizado. O virtual é o que não pode ser determinado por coordenadas espaciais ou temporais porque ele existe sem estar presente em um espaço ou tempo determinados. Ou seja, para o virtual a atopia e a acronia são o seu modo de ser. É o seu modo de existir. A atualização é o modo de relação dos indivíduos humanos como sistemas informacionais.
Nós mencionamos assim uma diferença entre a forma fordista da organização do trabalho para a relação do capital e a nova forma assumida pela economia com a globalização. O que é virtualizar uma empresa capitalista? Em um modo empresarial clássico, uma empresa reunia seus empregados em um mesmo edifício. O emprego do tempo dos funcionários era especificado por suas horas (horários de trabalho). Uma empresa virtual, em contrapartida, faz o uso maciço do tele-trabalho e tende a substituir a presença física dos empregados nos locais pela participação em uma rede de comunicação eletrônica e, o uso de recursos computacionais, favorecendo a cooperação. O centro de gravidade da organização não é mais um conjunto de postos de trabalho e de empregos do tempo, mas sim um processo de coordenação que redistribui as coordenadas, espaço temporais, do coletivo de trabalho e de cada um dos seus membros em função das diferentes exigências da empresa. Isto é a fragmentação total onde ninguém precisa encontrar ninguém, bastando apenas uma relação mediada pela “tele tele”. Com o virtual surge algo denominado cibercultura que se encontra ligada ao virtual de duas maneiras: de forma direta ou de forma indireta. Diretamente, a digitalização da informação pode ser aproximada da virtualização. Os códigos dos computadores inscritos nos discos “invisíveis” facilmente copiáveis ou transferíveis de um nó para outro da rede, são quase virtuais visto que são quase independentes de coordenadas, espaço temporais determináveis. No centro das redes digitais a informação situada em algum lugar, isto é, em um determinado suporte. Mas ele está também virtualmente presente em cada ponto da rede onde ela seja pedida. O mundo virtual considerado como um conjunto de códigos digitais é um potencial de imagens, enquanto uma determinada cena durante uma imersão no mundo virtual atualiza este potencial em um contexto particular de uso. Indiretamente a digitalização e a virtualização se relacionam porque as redes digitais e interativas, no seu desenvolvimento, favorecem outros movimentos de virtualização que não o da informação propriamente dita. Assim, a comunicação contínua como digital, o movimento de virtualização iniciado há muito tempo com técnicas antigas como a escrita, a gravação de som e imagem, o radio, a televisão e o telefone.
O ciberespaço encoraja um estilo de relacionamento quase independente dos lugares geográficos: telecomunicação, telepresença e das coincidências dos tempos. A extensão do ciberespaço acompanha e acelera uma virtualização geral da economia e da sociedade, os supostos de inteligência coletiva do ciberespaço multiplicam e colocam em sinergia competências. Do designe à estratégia, os cenários são alimentados pelas simulações e pelos dados que são colocados à disposição pelo universo digital. O ciberespaço julga alguns, é o vetor de um universo aberto, ou seja, a deputação de um espaço universal – isto é o não espaço. Muitos dos idealizadores e defensores do ciberespaço se referem a ele significativamente como espaço desincorporado e espiritual. Possibilidades, segundo alguns, de que nós possamos nos transformar em seres de pura luz, livres da brutalidade e do caos próprios dos nossos corpos, livres do espaço, livres do tempo. Novos anjos de um novo paraíso terrestre no qual evidentemente não haverá morte porque podemos fazer o download das nossas mentes para os computadores e transcendendo a materialidade, o espaço e o tempo, viver eternamente no espaço digital. Ora, como se percebe, nós estamos de volta ao nosso ponto de partida: de volta ao clássico problema filosófico da relação entre o corpo e a alma, a matéria e o espírito, o mundo e o pensamento.
É Interessante observar a oposição entre duas atitudes predominantes no mundo contemporâneo. De fato, enquanto a cultura do ciberespaço propõe a desmaterialização do homem, a sua transformação em um ser de pura luz sem espaço e sem tempo, por sua vez a genética, a bioquímica e a neurobiologia, tomam a direção oposta, pois propõe a pura materialidade do espírito, a indistinção entre cérebro e alma, cérebro e consciência. Estas duas atitudes estão presentes quando usamos expressões como inteligência artificial, armas inteligentes, tecidos inteligentes, remédios inteligentes, edifícios inteligentes etc., sem que nos demos conta de que significa usarmos a palavra “inteligência” para objetos técnicos. Ou seja, nós passamos a considerá-los como coisas habitadas por consciências ou almas, caímos numa concepção animista. Mas em contrapartida, do lado do ciberespaço nós nos tornamos puras almas angélicas sem corpo enquanto do lado da ciência nós nos tornamos puros corpos sem alma. Essas questões são discutidas e problematizadas em dois filmes: Matrix e Avatar.

Qual o impacto dessa desmaterialização nas relações sociais?

Sempre soube que desde o Weber que a ética protestante foi inseparável do capitalismo porque ela trouxe aquilo que era indispensável para a exploração do trabalho – a idéia de que o trabalho é a virtude suprema e a preguiça o pecado mortal. E para conseguir que todas as energias dos indivíduos e toda energia dos trabalhadores fosse exclusivamente dirigida para o trabalho, se teve a repressão sexual elevada a um nível poucas vezes conhecido na história. Não é por acaso que no período da moral Vitoriana que se detém também o nascimento da psicanálise, porque opera com a repressão do desejo como condição do exercício do trabalho. Todo mundo diz que nós mudamos de registro porque a nossa sociedade não é mais a sociedade do trabalho de massa e sim a sociedade do consumo em massa. E que para haver o sucesso do consumo em massa é preciso desreprimir o desejo, dar asas soltas ao desejo e, sobretudo, dar asas soltas à busca do prazer. Nós sabemos que qualquer liberação feita sob o modo de produção capitalista não libera coisa alguma. Então o que é esta suposta liberação do desejo? Este suposto direito ao prazer? É na verdade a maneira pela qual você passa a controlar o próprio desejo não mais através da ética do trabalho, mas através da ética do consumo. Tudo está ligado, portanto à idéia do indivíduo de sucesso, do indivíduo competitivo, do sucesso a qualquer preço, eternamente jovem, eternamente belo. Conduz as mulheres à bulimia e à anorexia das modelos, os homens ao desejo pelos automóveis, todo este emaranhado que é vendido como desejo liberal. Então retém uma nova forma de repressão do desejo pelo controle dele e pela determinação de quais são os objetos válidos de desejo. O resultado desse processo é muito pior do que o anterior porque no processo anterior havia um esforço enorme de passar dessa repressão a uma simbolização. Esse processo de simbolização nós não vemos mais em nossa sociedade contemporânea porque tudo que pertencia ao universo simbólico caiu para a dimensão do signo, virou espetáculo e como signo é aquilo que você aponta e daquilo de que você se apropria. E como não tem mediação simbólica, o que tem é uma luta mortal pelo acesso desses sinais: sucesso, juventude, poder, riqueza etc. E tudo isso gera uma violência, uma competição absolutamente colossal. Quando nós passamos para essa acronia, atopia e para a desmontagem do nosso corpo como ser sensível e como ser simbólico e assim nos reduzimos a sinais virtuais fora do espaço e do tempo, eu acabo sem saber o que sobrou dos seres humanos. Enfim, qual é o novo ser humano que está surgindo? Porque aquele que existia acabou. Como será o que virá? Ele vai nascer em um campo sem simbolização, só de sinalização, sem espaço, sem tempo e sem corpo, tudo virtual.   


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAUÍ, Marilena. A contração do tempo e do espaço do espetáculo. 2010. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=X5d1TBpXrq0
Acesso em 26 de Nov. de 2011

Nenhum comentário: